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Direto da Redação

Como vamos mudar isso?

Quando criança, brincava muito entre as árvores. Elas formavam um longo corredor, que se transformava na entrada de um castelo. Ou num bosque, onde lutava com monstros e bruxas. Talvez, por isso, sempre tive fascinação por caminhos. Em frente à minha casa, em Rio Pardo, havia uma rua. Um dos lados seguia até uma bifurcação. Mas o trajeto que costumávamos usar era o oposto. Muitas vezes imaginei onde aquele caminho levava. O lado direito eu podia ver da minha casa. Era o acesso a uma propriedade. O outro seguia desconhecido.

Nesse fim de semana, em sonho, caminhei por essa estrada de chão até chegar ao fim da reta. Mas não consegui seguir para a esquerda. Não pude andar na direção dela. Acordei intrigada. Por que tinha me lembrado disso? Recorri ao Google Maps. Descobri que a rua segue na direção do rio, mas termina antes de chegar nele. Decidi, num domingo cinza, ver o que havia depois da curva. Para chegar até o fim da rua, precisei passar pela minha infância. Cruzamos pela chácara onde brincávamos enquanto a mãe e o pai tiravam leite para vender de porta em porta. Passamos pelo lugar onde vivi. As árvores me impedem de ver se a casa ainda está lá. A casinha de madeira, meio torta, que sempre habita meus sonhos. Onde corri e li muito.

Seguimos até o fim da reta. Os dois caminhos, esquerda e direita, estavam lá. O da direita não me interessava. O da esquerda, para minha ingrata surpresa, agora possui uma cerca. Como não pretendo invadir a propriedade de ninguém, continuei sem resposta. No caminho de volta, vi casebres, vi crianças brincando em um ginásio, vi uma rua que leva o nome de Mário Quintana, o poeta das utopias. E fiquei pensando no que aquilo significava. Aquelas lembranças. Este artigo não deveria falar, mais uma vez, da minha infância. E sim sobre violência que vivemos.

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Deveria falar sobre o quanto somos ineficientes no combate à desigualdade, sobre como o crime ganha espaço em meio a isso, e vai continuar ganhando. Deveria lembrar como fechamos os olhos para a violência quando ela não nos ameaça. Como só nos incomoda quando nos tornamos possíveis vítimas. Deveria falar sobre como nossas polícias vivem um momento dramático, com falta de efetivo e de recursos. Sobre nossa omissão com nossos presídios e com tantas outras coisas. Deveria questionar como queremos soluções milagrosas, enquanto alimentamos um sistema caótico. Deveria lamentar os discursos fáceis, que disseminam ódio. Deveria lamentar também pelas vidas perdidas. Mesmo dos que não estão mortos.

Fiquei refletindo sobre como uma coisa leva à outra. Quando criança, fui amada, pude sonhar. Brinquei. Fui feliz. Por mais difícil que fosse, às vezes. Fui incentivada a estudar. Me disseram que deveria ser generosa. Que deveria olhar para os outros. Se não fosse assim, não sei como veria o mundo. E quem seria. Voltar lá me fez pensar nisso. Nas chances que tive. E nas que muitos não possuem. Nas infâncias renegadas. Nos descasos. Nos caminhos e futuros perdidos. E sobre como vamos mudar isso. Sobre como todos nós vamos continuar sofrendo, enquanto não entendermos isso. Neste caminho, por certo, há bem mais do que uma cerca.

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