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Segurança

A casa sigilosa que protege as mulheres da violência em Santa Cruz

Chovia na noite de 16 de janeiro no interior de Santa Cruz do Sul. Ainda com gosto de sangue na boca, Daniela*, de 30 anos, conseguiu sinal no celular que quase nunca funcionava. Após ligar para a Brigada Militar, ela saiu de casa com a roupa do corpo e dois filhos adolescentes, ambos com deficiência intelectual. Depois de caminhar por alguns quilômetros, foi resgatada pelos PMs e levada à Delegacia de Pronto-Atendimento, onde contou aos policiais que havia tido três dentes quebrados naquele dia pelo marido, que a agredira com uma cuia de chimarrão. Feito o registro, sem familiares ou amigos que pudessem ajudá-la, foi levada a um endereço sigiloso no Centro da cidade, onde sua vida começaria a mudar.

“O primeiro dia foi estranho. Foi a primeira vez em sete anos em que acordei sem briga e gritaria”, recorda. O lugar para onde Daniela foi levado é a Casa de Passagem da Mulher, prevista na Lei Maria da Penha e existente em Santa Cruz desde 2014. O imóvel, que muda de local de tempos em tempos e não tem o endereço divulgado, é mantido pela Prefeitura e recebe mulheres vítimas de violência doméstica que precisam de abrigo. Seguras, elas passam por atendimento psicológico, social e jurídico, e são orientadas a recomeçar a vida.

No caso de Daniela, foi preciso refazer inclusive os documentos pessoais, que haviam sido queimados pelo ex-marido. “Eu voltei lá para buscar as minhas coisas, acompanhada da polícia, e ele tinha queimado todas as minhas roupas e os documentos. Só consegui salvar a certidão de nascimento dos meus filhos, que peguei no dia em que fui embora”, conta.

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Além do fim da violência física e psicológica, Daniela diz que pôde desabafar na Casa de Passagem. “Recebi toda a atenção e pude botar para fora o que eu passei. Eu já tinha contado para outras pessoas, e me diziam para perdoar, mas se eu não tivesse saído aquela noite, ele tinha matado nós três. No interior é assim, tu apanha e fica quieta”, revela. Embora o tempo no abrigo costume ser de dois a cinco dias, Daniela passou dois meses e hoje tem uma nova casa, também com ajuda da Prefeitura.

*Nome fictício para preservar a identidade da entrevistada.

”Sem essa ajuda não tinha saído viva”

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Os dois filhos, que já tinha antes de casar com o agressor, permaneceram com Daniela durante toda a mudança. Com demandas especiais, eles também eram alvos das agressões do marido, estimulada pelo abuso de álcool. “Uma das reclamações era referente a eles, porque precisam de atendimento e ele achava que eu saía demais por isso. Reclamava de ter de comprar remédio, que gastava muito com comida, e às vezes batia neles. Tinha vezes em que ele bebia por dias sem parar, e aí ficava pior.”

Por conta da atenção que precisa dar aos filhos, levando-os para oficinas no Capsia duas vezes por semana e em consultas psiquiátricas uma vez por mês, Daniela tem encontrado dificuldade para se manter em um emprego e conquistar a independência financeira. Hoje a família participa do aluguel social, em que a Prefeitura ajuda com os custos da moradia. Para isso, no entanto, precisa estar trabalhando. “Eu tinha começado em uma fumageira e consegui participar do programa, mas acabei sendo demitida porque preciso sair para levar eles nos atendimentos. Agora, quando eles voltarem das férias, vou tentar fazer faxinas.”

Daniela está na lista para receber uma das casas do Residencial Santa Maria, conta com o Bolsa Família e aguarda para receber o Benefício de Prestação Continuada, auxílio para pessoas com necessidades especiais. Apesar de todas as dificuldades que ainda tem pela frente, ela se mantém centrada e afirma que está feliz. “Estou feliz, e muito. Sem ninguém para me xingar, sem aturar cheiro de bebida dentro de casa. Agora quero trabalhar e cuidar dos meus filhos, mas não me vejo tendo uma nova família por enquanto. Se não fosse toda essa ajuda e a Casa de Passagem eu não tinha saído de lá, não viva”, enfatiza.

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Proteção e auxílio para recomeçar

Além de acolher as mulheres, a Casa de Passagem ajuda as vítimas a mudar de vida. Há dois tipos de atendimento: o emergencial, que dura até 72 horas, e o temporário, que pode se estender por até três meses. Apesar de constantemente mudar de endereço, a casa sempre fica na região central, para facilitar o atendimento da vítima na rede de apoio. Todo deslocamento é feito na companhia de um monitor social. 

“Hoje temos uma casa de dois andares, com ar-condicionado, máquina de lavar, bons móveis e tudo o que elas precisam, com psicológo, assistente social e advogado. Além disso, sempre procuramos um local que seja bastante seguro, com muros e às vezes até com câmeras”, explica a secretária de Políticas Públicas, Guiomar Rossini Machado.

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Segundo ela, além da equipe técnica, só a Guarda Municipal sabe o endereço, e faz rondas periódicas. Atualmente nenhuma mulher está no abrigo, mas quando há atendimento, o lugar tem servente e monitora 24 horas. “Temos procurado divulgar mais esse serviço para que as mulheres saibam que existe uma grande rede de proteção, e que ela não pode aceitar a violência”, frisa. 

A assistente social Carla Dutra Berny reforça a importância de procurar ajuda. “Essas mulheres não estão sozinhas. Estamos aqui para apresentar possibilidades de um mundo melhor e sem violência, mesmo que para isso elas tenham de abrir mão do seu passado e fazer um novo caminho.”

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Delegada sugere estender o serviço

Para a delegada Lisandra de Castro de Carvalho, que comanda a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), a Casa de Passagem é um recurso fundamental no atendimento às vítimas de violência doméstica. “É um local onde elas podem permanecer até que a situação se estabilize, principalmente no caso das mulheres que moram com os agressores e querem sair de casa como busca por uma solução”, explica.

Ela ressalta que o serviço também pode ser requerido por mulheres que aguardam a decisão de pedidos de medida protetiva. “Mas não têm obrigação de pedir medida protetiva. Qualquer vítima pode fazer uso, até que consiga estabelecer a situação de moradia novamente. Só é preciso fazer um registro policial.”

Pela relevância do serviço, a delegada acredita que ele poderia ser usado por vítimas de outros municípios do Vale do Rio Pardo. “Santa Cruz pode se orgulhar de ter uma Casa de Passagem, porque essa não é uma realidade de todos os municípios da região. Já se cogita, informalmente, que ela possa servir para vítimas de cidades vizinhas, mas isso vai ficar a cargo da Prefeitura, já que temos uma casa que nem sempre está ocupada e existe essa demanda em outros municípios. Essa seria uma sugestão.”

Alerta: 10 tipos de violência

1: Humilhar, xingar e diminuir a autoestima
Agressões como humilhação, desvalorização moral ou deboche público em relação a mulher constam como tipos de violência emocional.

2: Tirar a liberdade de crença
Um homem não pode restringir a ação, a decisão ou a crença de uma mulher. Isso também é considerado como uma forma de violência psicológica.

3: Fazer a mulher achar que está ficando louca
Há inclusive um nome para isso: o gaslighting. Uma forma de abuso mental que consiste em distorcer os fatos e omitir situações para deixar a vítima em dúvida sobre a sua memória e sanidade.

4: Controlar e oprimir a mulher
Aqui o que conta é o comportamento obsessivo do homem sobre a mulher, como querer controlar o que ela faz, não deixá-la sair, isolar sua família e amigos ou procurar mensagens no celular ou e-mail.

5: Expor a vida íntima
Falar sobre a vida do casal para outros é considerado uma forma de violência moral, como por exemplo vazar fotos íntimas nas redes sociais como forma de vingança.

6: Atirar objetos, sacudir e apertar os braços
Nem toda violência física é o espancamento. São considerados também como abuso físico a tentativa de arremessar objetos, com a intenção de machucar, sacudir e segurar com força uma mulher.

7: Forçar atos sexuais desconfortáveis
Não é só forçar o sexo que consta como violência sexual. Obrigar a mulher a fazer atos sexuais que causam desconforto ou repulsa, como a realização de fetiches, também é violência.

8: Impedir a mulher de prevenir a gravidez ou obrigá-la a abortar
O ato de impedir uma mulher de usar métodos contraceptivos, como a pílula do dia seguinte ou o anticoncepcional, é considerado uma prática da violência sexual. Da mesma forma, obrigar uma mulher a abortar também é outra forma de abuso.

9: Controlar o dinheiro ou reter documentos
Se o homem tenta controlar, guardar ou tirar o dinheiro de uma mulher contra a sua vontade, assim como guardar documentos pessoais da mulher, isso é considerado uma forma de violência patrimonial.

10: Quebrar objetos da mulher
Outra forma de violência ao patrimônio da mulher é causar danos de propósito a objetos dela, ou objetos que ela goste.

Tire suas dúvidas

O que é a Casa de Passagem da Mulher?
A Casa de Passagem é um serviço de acolhimento previsto na Lei Maria da Penha para abrigar mulheres vítimas de violência que não têm para onde ir.

Onde ela fica?
A lei diz que o estabelecimento deve ficar na região central, mas o endereço exato é mantido em sigilo. Conforme são realizados os atendimentos e o imóvel vai ficando conhecido, a casa é transferida para outro lugar. A última casa de passagem ficou no mesmo endereço por dois anos.

Quem pode ir para a casa?
Qualquer mulher vítima de violência doméstica que more em Santa Cruz – ou em outro município que ofereça o serviço – e seus filhos, quando menores de idade. Para isso é preciso fazer um boletim de ocorrência. Se for constatada a  necessidade, o Escritório da Mulher encaminha o acolhimento.

Quais serviços são oferecidos às vítimas?
As vítimas e os filhos recebem atendimento integral, especialmente nas áreas de psicologia, serviço social e jurídico. Os profissionais trabalham para promover a inserção da mulher, com o resgate da autoestima, auxílio para obter emprego, renda e profissionalização, providenciar creches para as crianças e outras necessidades. O acolhimento é respeitoso e sem julgamentos.

Números

– Existem 70 casas de passagem no Brasil.
– Desde 2014, a casa de Santa Cruz já atendeu 71 mulheres.
– No ano passado, dez mulheres passaram pelo abrigo; neste ano já foram seis.

Denuncie

Escritório da Mulher: 3715 9305
Delegacia da Mulher: 371304340
Disque Denúncia: 180

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