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Casos do arquivo

Os mistérios por trás de uma chacina familiar no interior de Vera Cruz

Foto: Alencar da Rosa

Sepultura única no Cemitério Evangélico, no centro de Vera Cruz, guarda os restos mortais do casal Arno e Elvira, e da filha Rejane, que tinha 2 anos

“Uma tragédia possivelmente sem precedentes nos registros policiais deste município verificou-se na manhã de ontem, na vizinha localidade de Vila Teresa, a cinco quilômetros daquela sede distrital, em Linha Dois. Por volta das 14h30, saiu desta cidade a caravana chefiada pelo delegado Carlos Simões Pires, acompanhado do inspetor Nuno Alves Guimarães e pelo representante desta folha, em um jeep gentilmente cedido pelo prefeito Dr. Arthur Walter Kaempf.

Chegando no local, as autoridades passaram a se inteirar da trágica ocorrência ocorrida em um galpão, a 20 metros da residência do casal Radtke. Diversas pessoas, entre as quais os progenitores de duas vítimas, encontravam-se no local, aguardando a chegada da Polícia, para depois poderem auxiliar as famílias tão duramente chocadas pela tragédia.

Quando se abriu as portas do galpão, nossa reportagem, como todos os circunstantes, presenciou um quadro tétrico que tão breve ou talvez jamais se possa apagar da memória de qualquer pessoa que tivesse presenciado. Ao lado dos cadáveres ensanguentados de uma mulher e de uma criancinha, estendidos no chão, um homem enforcado com as mãos e o peito ensanguentados! Um enigma indecifrável de uma tragédia e possivelmente as três vítimas levarão o segredo, sem solução, para as tumbas que abrigarão seus restos mortais.”

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Datilografado pelo repórter Rony Forster, esse relato de uma cena de crime foi publicado na Gazeta do Sul de 1º de agosto de 1958, e remete ao dia anterior, quando a reportagem acompanhou um dos casos mais chocantes da região, de proporções inéditas. A série Casos do Arquivo volta no tempo para recontar esse episódio, que permanece um mistério, mesmo 63 anos depois.

Gazeta trouxe, no dia seguinte, o relato da tragédia

As mortes
O crime ocorreu às 7h30 de 31 de julho de 1958. O agricultor Arno Radtke, de 36 anos, definido por testemunhas à reportagem da Gazeta do Sul como habitualmente tranquilo, assassinou a esposa Elvira Porcher Radtke, de 34 anos, e sua filha Rejane, de 2 anos, a golpes de facão. Em seguida, para consumar o ato, amarrou uma forca ao pescoço e, com uma arma na mão, disparou em si mesmo quatro tiros, três no peito e um na cabeça, na altura do ouvido. A sequência de como as ações aconteceram foi constatada com a ajuda do doutor Jacob Blész.

Blész foi o médico que fez o parto da filha do casal e conhecia bem a família. Por isso sua presença foi requisitada pelas autoridades policiais. Ele constatou, em análise no local, que Elvira havia sido assassinada com dois profundos golpes pelas costas. “Estes, já teriam bastado para ocasionar a morte, porém, ainda foram constatados outros quatro pontaços na nuca, bem na base no crânio, por trás”, disse o médico para a Gazeta do Sul, na época. A menina Rejane apresentou também duas facadas pelas costas, uma delas transfixante, isto é, de lado a lado, atravessando o coração, e outra na nuca.

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“Após ter consumado o intento de dar morte à filha e à esposa, o alucinado agricultor tratou de eliminar-se a si mesmo, mas também de maneira segura. Após atar uma corda a um barrote do galpão, sentou-se sobre o canto da mesa de marceneiro e desfechou contra si a carga de quatro balas de seu revólver W0, sendo três no peito e uma na entrada do ouvido direito, a ponto de nem se notar a marca de pólvora. Nos três tiros que atingiram o coração, viam-se perfeitamente as aréolas nas bordas das brechas ocasionadas pelos disparos”, dizia o texto da reportagem de Rony Forster.

Como Arno havia passado ao pescoço a corda, em uma altura medida precisamente, ao cair ele ficou suspenso no ar, assegurando assim o efeito letal de sua ação. Devido ao mau tempo, as vítimas foram transportadas de carroça da cena do crime até a casa dos Porcher, onde foram veladas, nas proximidades da casa comercial Koelzer. Seus corpos foram enterrados em uma sepultura única, no Cemitério Evangélico, no Centro de Vera Cruz.

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Dúvidas e teorias
Embora o crime tenha acontecido cedo da manhã, foi constatado pelos familiares somente próximo do meio-dia. O pai de Arno, Guilherme Radtke, que morava a 20 metros da casa onde a tragédia aconteceu, foi quem descobriu a situação. Pouco antes das 12 horas, dirigiu-se à casa do filho para levar-lhe um assado de porco, pois naquela manhã havia carneado. Ao chegar na residência, encontrou todos os cômodos desertos. No galpão próximo, no entanto, topou com os cadáveres ensanguentados.

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A reportagem de 1958 detalha o momento da investigação em que uma dúvida pairou no ambiente. Ficaram evidentemente constatados os três tiros no peito e o quarto no ouvido. Contudo, restava esclarecer como poderia alguém ter disparado três vezes no coração e ainda conseguir atirar na cabeça. “Não seria uma pista que conduziria para um hediondo homicídio tríplice?”, questionou o repórter. Jacob Blész, contudo, diante de sua longa prática profissional, dissipou a dúvida e tratou de explicar que, examinando as brechas das balas, ficou claro que elas desviaram do coração para os lados, possibilitando assim o tiro definitivo e mortal no ouvido.

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As autoridades policiais examinaram os bolsos de Arno Radtke e encontraram nove balas novas de revólver calibre 32. As cápsulas das balas detonadas pareciam ser mais antigas. O revólver W0, do qual Arno tinha porte e guardava no coldre, em uma gaveta da casa, estava manchado com o sangue das vítimas ou de seu próprio, como também estava manchada a faca usada para matar a mulher e a criança.

O que teria passado pela cabeça de Arno, a ponto de levá-lo a assassinar a esposa e a filha a violentos golpes de faca, antes de se matar? Na cena do crime, surgiam mais dúvidas do que respostas. Uma das testemunhas no local sugeriu aos policiais que Radtke sempre carregava consigo grandes quantias de dinheiro nos bolsos. O inspetor Nuno fez a inspeção e encontrou a carteira, que continha 6.939 Cruzeiros, posteriormente entregues ao pai dele, Guilherme. Junto com o dinheiro havia muitos papéis e notas de compra, mas nenhum bilhete que pudesse dar uma explicação para a tragédia.

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Discussão no dia anterior
Com 22 anos na época, Ervino Radtke, hoje com 84, recorda dos fatos com precisão. Ele conversou com a reportagem da Gazeta do Sul na propriedade da família, que fica em Linha Dona Josefa, Vera Cruz. “Eu havia casado recentemente. Lembro que naquele dia estava chuviscando. Saímos daqui para ir na casa do meu pai e mãe tomar chimarrão, algo que era costume. Chegamos e o pai já estava com o chimarrão pronto. Acabamos ficando por ali”, contou Ervino.

Ele disse que a família sabia que o irmão mexia com arma. No outro dia, logo pela manhã, relatou que foram ouvidos dois tiros, mas não imaginaram o que poderia ser. Segundo a reportagem, não houve preocupação dos familiares e vizinhos, pois nas redondezas eram comuns as caças a gambás e outros animais. “Depois, o pai carneou um porco e, como era costume, pegou um quarto e foi levar na casa deles. Chegou lá, viu que não tinha ninguém e deixou a carne em cima da mesa. Aí foi no galpão e lá ele viu”, relatou Radtke.

Sobre os motivos que podem ter levado Arno a cometer o crime, Ervino afirma não saber, mas lembrou de um fato curioso contado pela mãe a ele. “Ninguém sabe por que ele fez isso. Só que no dia anterior ao fato, ela viu eles buscando pasto e estavam discutindo. Foi a única coisa diferente do normal.” De cinco irmãos, três homens e duas mulheres, Arno era o mais velho, e Ervino o segundo mais novo.

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O irmão se emocionou ao lembrar da parceria que tinham. “Eu era muito próximo dele, tínhamos uma boa amizade, ele gostava de pescar. Um ano, plantamos tabaco juntos. Ele era trabalhador, uma pessoa boa, eu gostava muito dele”, recordou. Ervino discorda que algo externo ou mesmo problemas de depressão tivessem afetado Arno Radtke. “Não acredito. Ele tinha todo o material de construção comprado para construir uma casa nova. A gente ficou chocada.”

Ervino Radtke, irmão de Arno, recorda com carinho do irmão, que gostava de pescar | Foto: Rafaelly Machado

Uma visita ao Fórum
Arno Radtke, filho do casal Guilherme e Elsa Sins Radtke, havia completado 36 anos nove dias antes do crime e era dedicado à família. A esposa, Elvira Porcher Radtke, era filha do casal Ernesto e Lina Jost Porcher, e tinha completado 34 anos no dia 21 de abril daquele ano. A filha do casal, Rejane, havia completado 2 anos em 14 de julho, portanto 17 dias antes do crime, véspera da data em que seus pais também completaram 14 anos de vida conjugal, com uma boa situação financeira.

Testemunhas contaram à reportagem, na época, que Arno era uma pessoa estranha, chamado de “ensimesmado”, ou seja, tímido, reservado. Era de “bons sentimentos”, segundo os relatos colhidos pela equipe da Gazeta, no entanto, era extremamente sensível e se ofendia facilmente, às vezes por pouca coisa. Nos últimos tempos, sentia-se melhor com um tratamento para o nervosismo, com chás caseiros e remédios receitados por curandeiros.

Outra informação obtida pela reportagem, na ocasião, foi que o casal Radtke havia tido um outro filho, considerado natimorto, por ter morrido durante a gestação. A família fazia planos de construir uma nova casa e já havia comprado o material para a obra, o que torna a motivação para o crime ainda mais misteriosa.

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Outro detalhe descoberto ao longo do inquérito policial foi que em 29 de julho, dois dias antes das mortes, Arno Radtke havia comparecido ao Fórum de Santa Cruz do Sul. Ele foi ao local para depor como testemunha em um processo em que Antônio da Silva, irmão de um peão seu, estava respondendo. Embora o depoimento tenha sido breve, segundo apurou a reportagem, a volta para casa gerou um clima estranho. Uma preocupação aparentava estar incomodando Arno, a ponto de a esposa ter falado do assunto à sua mãe, Lina Jost. Ninguém, porém, após o crime, podia afirmar que as mortes tivessem ligação com o comparecimento de Arno à Justiça, dias antes.

Os motivos que íntimos e familiares do autor da tragédia apontaram como possíveis causas, segundo a reportagem da época, “não passavam de conjecturas sem probabilidade de confirmação, uma vez que Arno não deixou qualquer documento escrito, e nem apareceu qualquer pessoa a que ele tivesse confidenciado alguma eventual contrariedade”. Tal qual diz o texto de Rony Forster, ainda hoje, 63 anos depois, “permanece envolvo em denso véu de mistério o motivo exato que teria levado Arno Radtke para uma ação tão drástica”.

Bastidores
A riqueza de detalhes sobre o caso, descrito nas páginas da Gazeta do Sul nas edições de 1º e 2 de agosto de 1958, impressiona. O repórter Rony Forster, aproveitando-se de uma época em que as diligências policiais eram acompanhadas de perto pelos jornalistas, escreveu um texto digno de roteiro de filme, atendo-se a particularidades.

Em uma das matérias, ele conta que não foi possível registrar em fotografias o caso, pois o experiente fotógrafo Alcides Bertuol teve seu veículo bloqueado pela estrada completamente embarrada pelos constantes dias de chuva, “apesar da cooperação da Polícia Rodoviária que procurou, por todos os meios, facilitar o acesso dos jornalistas ao teatro dos acontecimentos”, citou no texto.

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Em outra parte da reportagem, descreveu com detalhes a aparência das vítimas na cena do crime. “A menina Rejane, estendida morta ao lado de sua mãe, mantinha o olhar sereno, esboçando um leve sorriso. Igualmente tranquilo estava o olhar de Arno Radtke, sendo normal sua fisionomia. A senhora Elvira caiu de bruços sobre as raízes de mandiocas e batatas que estava cortando com um facão, para dar como trato ao gado leiteiro. Não se podia avaliar bem a sua expressão, por ter o seu rosto ficado todo ensanguentado pela posição de decúbito frontal em que ficou.”

A descrição detalhada ainda foi capaz de contar uma situação inusitada pela qual passou outro colega, que não teve o nome mencionado, e conseguiu chegar ao local montado em um cavalo. O animal foi colocado à disposição da Gazeta pelo cavaleiro Ruben Gerhardt.

Gazeta também mostrou detalhes dos bastidores

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