Rádios ao vivo

Leia a Gazeta Digital

Publicidade

Nas brumas do passado

História: a suposta missão dos jesuítas em Vera Cruz

Foto: Ricardo Düren

Para Limberger, Orellana estaria enterrado perto da caixa d’água, entre as linhas Tapera e Alta. No local há um açude onde os bandeirantes teriam afogado os feridos

Estendendo-se entre áreas de mata e estradas de chão batido, as lavouras de tabaco predominam na paisagem de Linha Tapera, no interior de Vera Cruz. O bom desenvolvimento das folhas e as expectativas com a venda da safra são temas recorrentes nas rodas de conversa dos moradores do lugar. Porém, não raras vezes o assunto descamba também para histórias sobre fantasmas e estranhas aparições.

A professora aposentada Liane Sehnem, que se criou por lá, lembra que, quando criança, tinha muito medo de passar ao lado de uma taquareira situada no caminho para Linha Alta, a localidade vizinha. “Todos diziam que o lugar era mal-assombrado”, conta. A taquareira já não existe mais; porém, as histórias sobre estranhas aparições se perpetuam.

O agricultor Luiz Aretz, 55 anos, morador da divisa entre as linhas Tapera e Alta, conta que certa vez um familiar viu uma espécie de bola de luz flutuando no ar, à noite. Outro episódio narrado por ele é o de um peão que foi embora de Linha Tapera, apavorado com estranhos fenômenos. “Era paiol que desabava, eram rajadas de vento que derrubavam tudo. Aquele homem não teve sossego.” Aretz sabe ainda de um vizinho que, certa noite, ficou sobressaltado com um tropel de cavalos à sua porta. Ao sair para ver o que era, não encontrou nada. “Dizem que essa região é assombrada e que isso tem a ver com um padre enterrado por aqui”, comenta.

Publicidade

A versão envolvendo o tal padre, no entanto, era pouco conhecida entre os moradores até que o advogado e ex-professor Emiliano Limberger, um pesquisador autodidata apaixonado pela história das missões jesuíticas no Rio Grande do Sul, apareceu por lá, há 16 anos, munido com cópias de antigos mapas e anotações com coordenadas geográficas. Após perambular pelas estradinhas e lavouras segurando um curioso pêndulo, Limberger assinalou, perto da torre de uma caixa d’água, o ponto onde estaria sepultado o padre Cristóvão de Mendoza y Orellana, um dos mais importantes líderes jesuítas do século XVII no Brasil e grande responsável pela introdução do gado no Rio Grande do Sul.

E isso não é tudo. Contrariando o que dizem arqueólogos e historiadores, o ousado pesquisador garante que Linha Tapera foi sede de uma redução jesuítica onde os padres catequizavam índios, até serem arrasados por um ataque de bandeirantes, em 1636. Hoje com 92 anos, ainda dono de uma memória invejável, Limberger segue com suas pesquisas e é irredutível em sua teoria de que a região foi parte importante no mapa da expansão missioneira.

Desenho ilustra a chegada de Orellana com a primeira tropa de gado em solo gaúcho

O pesquisador

Publicidade

Elegantemente trajado, com um colete cinza sobre a camisa social e um boné enfeitado com uma cruz missioneira na aba, Emiliano José Limberger recebeu a Gazeta do Sul no escritório abarrotado de livros instalado no apartamento onde mora sozinho, no primeiro andar de um edifício da Rua Protásio Alves, em Porto Alegre. Eleito vereador em Santa Cruz do Sul em 1955, o rio-pardense de Rincão Del Rey mantém uma admiração pela tradição jesuítica que começou aos 11 anos, quando teve os primeiros contatos com os padres jesuítas no internato do Colégio São Luiz. Vigoroso no alto de seus 92 anos, é o coordenador da Semana Missioneira, realizada anualmente em abril na capital, ministra palestras e “bate” textos sobre suas descobertas em uma máquina de escrever. Está com um livro sobre a história de Sepé Tiaraju no prelo, na gráfica do Senado Federal.

Limberger afirma que, para chegar a suas conclusões, realizou pesquisas em antigos arquivos dos jesuítas armazenados em dioceses, universidades e bibliotecas de seis países. Peregrinou por Argentina, Uruguai, Chile, Alemanha e Itália. Entrou na resguardada Biblioteca do Vaticano e trocou correspondências com o Castelo de Simancas, que guarda arquivos há quase 500 anos. Cruzando informações obtidas nesses lugares, Limberger concluiu que, diferente do que afirmam os historiadores, a Redução Jesuítica Jesus Maria foi erguida no atual território de Vera Cruz, e não em Candelária. “A redução que existiu aos pés do Botucaraí foi a de Visitación. A Jesus Maria ficava em Linha Tapera e era a base de Cristóvão de Mendoza. Por isso, o padre está sepultado lá”, afirma, sem pestanejar.

Nascido em Santa Cruz de La Sierra em 1590, Mendoza y Orellana é reverenciado não só por sua importância como líder missioneiro, mas também pela forma como acabou morto. Vítima de uma emboscada supostamente arquitetada por bandeirantes, o padre foi torturado a golpes de faca e tacape ao longo de dois dias por índios que pretendia catequizar. “Ele poderia ter fugido quando começou o ataque dos índios, mas voltou para dar a extrema-unção a um companheiro ferido. Nisso, foi aprisionado e martirizado”, conta Limberger.

Publicidade

Conforme a história oficial, o martírio de Orellana ocorreu em 1635 na atual Caxias do Sul, onde hoje existe um monumento em homenagem ao padre e uma escola com seu nome. Mas, segundo Limberger, a morte ocorreu em Tabaí e o corpo do jesuíta foi levado para sepultamento em Linha Tapera, na redução que lhe serviu como sede. “Orellana era um visionário com preocupações que ultrapassavam a catequização dos índios. Para garantir a alimentação deles, mandou comprar 1,5 mil cabeças de gado do Paraguai para iniciar a criação em solo rio-grandense – dele advém a expressão gado “orelhano”, o gado xucro, ou chimarrão, dos gaúchos. Como não havia dinheiro suficiente, empenhou como garantia cálices usados nas missas. Foi um crime canônico, mas necessário”, relata Limberger.

Emiliano Limberger dedicou boa parte da vida a investigar a
história dos jesuítas | Foto: Ricardo Düren

Seria o túmulo do padre Orellana?

Emiliano Limberger garante que, durante suas andanças por Linha Tapera, descobriu o lugar onde o corpo do padre Cristóvão de Mendoza y Orellana teria sido sepultado. Para marcar o ponto, nas proximidades da caixa d’água, entre Linha Tapera e Linha Alta, o pesquisador mandou erguer uma cruz missioneira, de madeira. Em 2011 uma missa crioulla foi rezada no local, com a participação de cavalarianos e tradicionalistas vinculados à Semana Missioneira.

Publicidade

O procedimento que Limberger utilizou para chegar ao local exato do sepultamento, porém, não é, nem de longe, um método aceito pela historiografia oficial. Após concluir, com base em mapas e relatórios de jesuítas (veja no quadro abaixo), que a Redução Jesus Maria ficava na atual Linha Tapera, passou a circular por lá com um pêndulo – no caso, uma argola suspensa por uma linha. “Funciona assim: quando mentalizo o que desejo, o pêndulo sinaliza, balançando sobre o local que pretendo encontrar”, explica. Segundo ele, tal procedimento não tem nada de místico ou mágico. “É pura parapsicologia, uma ciência que ainda está em estudo, que tenta explicar o poder da mente”, salienta.

O pesquisador igualmente argumenta que um açude situado próximo ao suposto lugar do sepultamento também aparece em registros dos jesuítas sobre a batalha que culminou no fim da redução. Conforme ele, os escritos indicam que os bandeirantes avançaram sobre Jesus Maria com um exército formado por índios tupis. “Segundo os relatos, os bandeirantes mergulharam seus próprios feridos no açude, para que morressem logo, ao invés de cuidar deles. Eles destruíram tudo. Quem não fugiu ou foi morto, foi levado como escravo. Tempos depois, quando um emissário jesuíta voltou ao local, escreveu que a redução fora reduzida a uma tapera. Daí o nome da localidade.”

Já a cruz missioneira erguida a mando de Limberger sumiu há poucos anos. Luiz Aretz ouviu dizer que um grupo a teria arrancado e jogado sob um ônibus, na tentativa de parar o coletivo por causa de uma rixa com o motorista – que não freou e passou sobre a cruz. A reportagem encontrou nas imediações um pedaço de madeira que possivelmente formava um dos braços.

Publicidade

Da cruz missioneira acabou restando só um pedaço | Foto: Ricardo Düren

Evidências

Limberger apresenta duas evidências principais de que a Redução Jesus Maria teria sido erguida em Linha Tapera, enquanto em Candelária ficava uma redução chamada Visitación:

O mapa: na Coleção Furlong, junto à Universidade de Buenos Aires, o pesquisador encontrou um mapa que indica onde ficavam as reduções jesuíticas entre 1631 e 1636. Nele aparecem, próximas, as reduções de Visitación e Jesus Maria em pontos que equivaleriam, respectivamente, a Candelária e Vera Cruz.

O manuscrito: segundo textos do padre jesuíta Bernardo Nussdorfer, a redução que ficava junto ao cerro Ibiti-Caray – ou Botucaraí, segundo Limberger – chamava-se Visitación. Não era, portanto, a Jesus Maria.

Foto: Ricardo Düren

QUEM ERAM

Os índios: o Rio Grande do Sul (então Tape) era habitado por índios guaranis, parte deles reunida por jesuítas espanhóis em reduções nas áreas entre os rios Piratini, Ibicuí e Jacuí.

Os jesuítas: a mando da Espanha, os jesuítas chegaram à América em 1534 e implantaram reduções a partir do Prata para converter os índios e organizá-los para o trabalho coletivo.

Os bandeirantes: a partir do Sudeste, em especial de São Paulo, portugueses (como Raposo Tavares) fizeram incursões a fim de capturar índios e expandir o território de posse de Portugal.

Muitas dúvidas que persistem

A possível presença jesuítica ou missioneira no Vale do Rio Pardo, em localidades como Vera Cruz, Candelária, Santa Cruz do Sul e Rio Pardo, só poderia mesmo ser um tema controverso. Afinal, está em questão um momento histórico que antecede em cerca de 80 anos a chegada dos primeiros colonizadores portugueses à atual cidade de Rio Pardo, apenas para tomar como referência a primeira presença efetiva de ocupação portuguesa nessa região. Ou seja, os fatos relacionados às reduções jesuíticas (espanholas) no atual território gaúcho são muito anteriores a qualquer possibilidade de registro histórico português.

Por essa razão, procede o esforço realizado pelo advogado e pesquisador autodidata Emiliano Limberger de consultar bibliotecas e acervos em cidades que, no século XVII, respondiam pelos arquivos da administração jesuítica, sob jurisdição espanhola – afinal, os jesuítas estavam no sul da América em missão demandada pela Espanha. Não por acaso, os documentos que localizou, no original em espanhol, estavam na Espanha, na Argentina, no Paraguai e na Bolívia, entre outros países.

E se os historiadores vinculados aos estudos formais na atualidade, no Rio Grande do Sul e no Brasil, questionam ou refutam a ideia de que uma redução jesuítica pudesse ter existido em território do atual município de Vera Cruz, Limberger localizou descritivos e mapas em que, efetivamente, ao sopé do Morro Botucaraí aparecem situadas a Redução de Visitación e, afastada desta, em direção ao Leste, a de Jesus Maria.

Até onde essa descrição, presente no Relatório da transmigração e guerra dos sete povos do Rio Grande do Sul, elaborado entre 1750 e 1756 pelo padre Bernardo Nussdorfer, superior das missões jesuíticas, é mais ou menos confiável do que as interpretações posteriores de estudiosos portugueses, que ocuparam o território quase um século após o fim dos acontecimentos missioneiros nessa região, eis algo que só aos historiadores cabe elucidar.

A simples menção a elementos de viés histórico no nome das localidades desse cenário já se torna uma espécie de indicativo, fixado no imaginário popular ao longo das décadas e dos séculos. “Linhas”, como “Tapera”, “Sítio” e “Entre Rios”, apontam para toponímicos e espaços de acontecimentos significativos no passado regional. Era um ambiente que, ao longo da primeira metade do século XVII, estava todo disponível para os ocupantes dos aldeamentos missioneiros dos jesuítas espanhóis. E as reduções no atual território sul-rio-grandense na verdade constituíam apenas uma extensão natural das reduções da região do Paraguai.

“Nada sugere que houvesse uma redução”

A historiadora vera-cruzense Marina Barth, que atua como professora em Vera Cruz, refuta a ideia defendida por Limberger de que na região de Sítio ou de Tapera pudesse ter existido uma redução jesuítica, e muito menos que pudesse se tratar da Redução Jesus Maria, que os historiadores situam como tendo existido ao sopé do Botucaraí, em Candelária. Nesta teriam sido “reduzidos” (isto é, reunidos) cerca de 6 mil indígenas, embora os registros de memorialistas espanhóis sugiram que o número possa ser superior a 10 mil. De uma forma ou de outra, seria, mesmo nos dias atuais, uma cidade já de porte. E isso nas primeiras décadas dos anos de 1600.

Marina lembra que ao longo dos anos, desde a década de 1960, em torno de 120 sítios arqueológicos com vestígios indígenas foram localizados só no território de Vera Cruz. São itens que sugerem intensa atividade social, com elementos como urnas funerárias, machado polidor, afiadores, cachimbos, vasos de cerâmica e pontas de flechas, de origem nas tradições Tupi-guarani e Umbu. Arqueólogos e pesquisadores dedicaram-se a essa área. É o caso de Gastão Baumhard, Hardy Elmiro Martin, Roberto Steinhaus (Martin e Steinhaus inclusive eram vera-cruzenses) e de equipes do Museu do Mauá e do Centro de Ensino e Pesquisas Arqueológicas (Cepa) da Unisc, por anos lideradas pelo professor e arqueólogo Pedro Augusto Mentz Ribeiro (1937-2006) e atualmente aos cuidados do professor Sergio Celio Klamt.

Na avaliação de Marina, os vestígios arqueológicos encontrados na região das linhas Sítio e Tapera são muito anteriores a uma possível presença jesuítica ou do período das reduções. Em seu entender, se efetivamente tivesse se tratado de uma redução, em toda a região de entorno deveriam ter sido encontrados muito mais elementos relacionados a um grande ajuntamento humano. Mas tudo o que é localizado seriam vestígios esporádicos (pontas de flechas, urnas funerárias). “São elementos que fazem parte de um sítio tupi-guarani, e não há nenhum aspecto pontual que sugira que possa ter existido ali uma redução”, frisa.

Ela questiona o fato de Limberger, ao dizer que possui documentos de cunho histórico, nunca ter publicado ou compartilhado tal conhecimento. “Todo historiador, quando faz um achado ou descobre algo muito relevante, a primeira coisa que faz é publicar, colocar esse assunto ou tema em debate, compartilhar com outros para que, juntos, possam avaliar ou estudar tal aspecto e estimular novas pesquisas. Acho que ele deveria publicar. Já deveria ter publicado, se realmente tem algo tão relevante”, sugere. Conforme ela, as pesquisas e os estudos na região prosseguem, com novas gerações de estudantes aliando-se nesse campo.

Dicas para saber mais:
– Pedido de perdão ao triunfo da humanidade, de José Roberto de Oliveira, pela Martins Livreiro
– Conquista espiritual, do padre Antônio Ruiz de Montoya, pela Martins Livreiro
– Os Sete Povos das Missões: trágica experiência, de Mario Simon, pela editora Santo Antonio
– Raposo Tavares, o último bandeirante, de Pedro Pinto, pela editora Planeta
– Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil, de Jaime Cortesão, pela editora Fundap/Imprensa Oficial, de 2013

Aviso de cookies

Nós utilizamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar sua experiência em nossos serviços, personalizar publicidade e recomendar conteúdos de seu interesse. Para saber mais, consulte a nossa Política de Privacidade.