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Cultura

Nas teclas, um pouco da história da música em Santa Cruz

Foto: Alencar da Rosa

A cultura de um povo passa inegavelmente por suas tradições musicais. Em Santa Cruz do Sul, a música chegou cedo com os imigrantes alemães e se tornou uma das atividades mais comuns para os moradores daqui. Com os anos, a presença de outros povos só enriqueceu ainda mais as referências dos artistas locais, que vão do erudito ao popular em todos os gêneros. Como parte indispensável dessa história, os pianos e órgãos do município são uma prova viva da arte cultivada pelos antepassados. Ambos fazem parte da memória de Santa Cruz do Sul, que tem instrumentos marcantes e artistas cheios de histórias para contar. E, neste período de festas, muito concertos e apresentações nos lembram da afetividade cultural ligada aos instrumentos de teclas.

Órgão fabricado em 1887 está na Igreja Evangélica, na Venâncio Aires, e passou por manutenção em 2016

Relíquia construída na Alemanha
A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), na Rua Venâncio Aires, esquina com a Rua Sete de Setembro, além de ser o maior templo evangélico do Rio Grande do Sul e ter sido construída em estilo neorromântico, abriga um dos instrumentos mais belos de Santa Cruz. O órgão de tubos do templo foi construído em Barmen, na Alemanha, pela empresa de Richard Ibach, organeiro que atuou a partir de 1869. O órgão, que leva a inscrição de sua data de fabricação (1887, ano em que chegou ao Brasil), é um dos 210 fabricados pela companhia, a mais conceituada do mundo no período.

Instalado em Santa Cruz no começo do século 20, o instrumento passou por uma restauração em 1974, realizada por Sérgio Silvestri, de Montevidéu, Uruguai. Na época, o trabalho coordenado pelo pastor Klaus-Ulrich Werner contou com uma raspagem das três ou quatro camadas de tinta aplicadas na estrutura ao longo dos anos. Conforme o autor Felipe Altermann, no livro Templo memorial – Restauração e reconstrução, a intenção da intervenção era que o órgão voltasse ao aspecto natural da madeira, uma de suas características originais.

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A última manutenção, há três anos, levou mais de cinco meses e custou R$ 85 mil. O instrumento foi completamente desmontado e teve as 6 mil peças numeradas e levadas de caminhão para Santa Maria, onde residia o organeiro alemão Manfred Ronald Worlitschek. Em novembro passado, antes do tradicional concerto de Natal, os responsáveis pela Igreja tentaram entrar em contato, para que Manfred viesse até Santa Cruz realizar reparos pontuais, quando ficaram sabendo que ele havia falecido em janeiro deste ano.

A organista
Todos os domingos, há mais de 45 anos, Iris Jaeger Rutsatz é a principal companheira do órgão de tubos. Aos 76 anos, além de organista, ela é regente do Coral da Igreja Evangélica Jubilate e integrante do Coral da Afubra. No primeiro, ela atua como coordenadora desde o ano de 1986; no outro, completou duas décadas de participação.

A jornada de Iris na música começou muito cedo. Com apenas 9 anos, ela aprendeu a tocar cítara com a mãe. “Com 12 anos estudei acordeom. Eu queria muito estudar o piano, mas não tínhamos, já que as condições financeiras não permitiam. Me formei com 15 anos no acordeom. Depois que casei, conheci uma vizinha que tinha um piano e eu ia lá dedilhar. Ela me dava umas dicas”, conta. Quando Iris completou 28 anos, sua família adquiriu um piano que pertencia a um dos pastores da Igreja Evangélica, que havia se mudado para a Alemanha. A posse do instrumento lhe permitiu o estudo.

Mais tarde, com 35 anos, ela passou a estudar também canto com a professora de canto lírico e orfeônico santa-cruzense Marga Alvarez. Iris lembra com saudades da convivência com Marga, falecida em 2007. Soprano lírica como a mentora, Iris considera que ela foi não só uma grande amiga, mas uma segunda mãe. Juntas, as duas organizavam os concertos de Natal da Igreja Evangélica, agora a cargo da organista.

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Em nosso encontro no segundo andar do templo, onde fica o famoso órgão, Iris brindou a equipe da Gazeta do Sul com algumas canções. Além da bicentenária Noite Feliz, ela tocou Ó Santíssima, de Ludwig von Beethoven, e a canção folclórica alemã O Tannenbaum. Junto ao órgão eletrônico, ela entoou a letra de Só Você Vai Me Fazer Feliz, versão em português do clássico imortalizado por Elvis Presley, Can’t Help Falling In Love. Impossível manter os olhos secos e não sorrir com admiração, como faz o marido de Iris, Darci Elíbio Rutsatz.

Mesmo sem ter aprendido a tocar, ela conta que o marido é um apreciador da música e foi o grande apoiador de sua carreira. Seu Darci confidencia que se arrepende apenas de ela não ter cantado na ocasião do casamento dos dois, há 53 anos. Iris justifica que ainda não havia estudado canto naquela época. No entanto, durante a renovação dos votos feita pelos dois em 2017, pelas bodas de ouro, ela homenageou o companheiro cantando uma música de Roberto Carlos. Os dois tiveram três filhos: Anne Marie, Anne Cristine e Marcos Darci. Todos chegaram a aprender piano com a mãe, mas optaram por carreiras em outras áreas e hoje residem fora de Santa Cruz, com os cinco netos do casal.

A combinação de talentos transformou Iris Rutsatz em uma das artistas mais requisitadas para cantar em casamentos entre os anos 1980 e o início dos anos 2000 na região. “Tinha eventos quase todos os finais de semana para cantar, tinha pouca gente que cantava naquela época.” A carreira na música rendeu ainda a gravação de dois CDs: um de músicas natalinas em 2007 e outro com as suas canções preferidas em 2009, que reuniu composições eruditas, sacras e românticas.

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Iris Rutsatz: companheira do intrumento há mais de 45 anos

Instrumentos de teclas
Semelhantes externamente, os instrumentos de teclas se diferenciam pela parte interna e possuem sonoridades diversas. Conheça um pouco mais sobre eles.

Piano: conforme Pierre Marchand, no livro A música dos instrumentos – das flautas de osso da pré-história às guitarras elétricas, é uma variação do cravo e do clavicórdio. Surgiu na Itália, no século 18. O pianoforte é um instrumento de cordas percussivas e produz o som através de peças de madeira revestidas de feltro, denominadas martelos, que são ativadas pelas teclas e tocam as cordas esticadas. Ele deu origem ao teclado, que é eletrônico e capaz de produzir sons e timbres diversos, porém, mais fácil de tocar porque possui teclas mais leves.

Órgão: é um instrumento de sopro da família dos aerofones de teclas, em que o som é produzido pela passagem de ar comprimido através de tubos sonoros de formatos diferentes, acionados pelas teclas, manuais e uma pedaleira. Foi o primeiro instrumento de teclas e surgiu como o conhecemos no século 4. No entanto, sua história remonta ao século 3 a.C, com o hidraulo, antepassado do órgão, que foi muito popular no Império Romano. As versões mais modernas são eletrônicas e reproduzem os mesmos sons dos tubos.

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Nova geração
A música segue sua tradição na cidade, dentro das famílias ou nos ambientes de aprendizagem. Professor de canto, piano e violão, Gustavo Sehnem, de 27 anos, respira música desde a infância. “Venho de uma família que tem o costume de cantar. Meu pai, Celso Pedro Sehnem, sempre lidava com música e eu com 4 anos já cantava junto.” Os estudos iniciaram-se aos 7 anos no teclado e mais tarde acabaram abrangendo os outros instrumentos. “Não me considero um pianista clássico, eu sou um cara que gosta de tocar”, explica.

Thiago Porto: tocar piano é um diferencial na hora de compor

Gustavo, que dá aulas particulares e no Batera’s School, conta que a maior parte de seus alunos é jovem, mas as idades variam dos 6 aos 50 anos. “Tem me surpreendido o índice de jovens que querem tocar, bem mais do que parece. Eu vejo muita procura e até mesmo por piano clássico, que não é tão popular.” Em sua jornada, Sehnem, que também é regente do Coral da Afubra, lamenta apenas que as pessoas não compreendam mais a importância da música.

O caminho do músico e servidor público Thiago Porto, de 31 anos, é parecido. Começou em casa e aprendeu piano com o pai, o promotor Pedro Rui da Fontoura Porto, aos 8 anos. “O piano é o instrumento mais romântico de todos, né, ele tem um peso maior, uma imponência. Acho que essa é a principal diferença, fora que é um instrumento extremamente elegante.”

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Vocalista das bandas extintas Nightstalkers e Predadores e da atual Lobos da Estepe, Porto também toca guitarra, flauta transversal, baixo e gaita de boca. Ele conta que a maior parte de suas composições é feita com o violão, por ser mais prático, mas observa que saber tocar piano é um grande diferencial. “Muitas vezes eu saio do violão e vou para o piano, porque cada instrumento tem uma linguagem diferente.” Apesar de conhecer pessoas que também tocam, Thiago acredita que o instrumento não é tão popular quanto o violão e a guitarra, mais acessíveis.

Os dois músicos gravaram duas versões da canção Happy Christmas, de John Lennon, conhecida em português como Então é Natal. Thiago Porto, que cantou em inglês, recebeu a equipe na casa do pai e tocou um piano de cauda Suzuki. Já Gustavo gravou dentro do estúdio, usando um instrumento eletrônico.

Além de Thiago, Iris e Gustavo, Santa Cruz do Sul tem muitos moradores que também tocam piano, tais como Norma Clarice Schütz Araújo, Angela Karl, Jairo Padilha, Lucas Kist, Sandra Mohr e Janine Cury. A cidade também conta com outros instrumentos que não foram contemplados nesta reportagem, Catedral São João Batista, na Unisc e no Colégio Marista São Luís.

Gustavo Sehnem: aulas para alunos de 6 a 50 anos de idade

Casa das Artes busca patrocínio para restauração
Um dos pianos disponíveis para o público santa-cruzense está localizado na Casa das Artes Regina Simonis, na Marechal Floriano, 651, no coração da cidade. De acordo com a vice-presidente da Associação Pró-Cultura, Carmen Regina Pozzobon da Costa, algumas pessoas usam o instrumento periodicamente, mas ele está precisando de reparos.

“Ele está desafinado e tem outros problemas estruturais, cujo conserto exige um investimento de R$ 25 mil. Como temos problemas prioritários de manutenção na Casa das Artes, não podemos encarar mais esse desafio neste mometo. Lamentamos, porque poderia render belos concertos e recitais”, comenta.

O piano de cauda foi uma doação de Jorge Roberto Ortiz Domingues. Ele é da marca alemã Rud Ibach Sohn, empresa criada pelos descendentes do organeiro Richard Ibach, mesmo construtor do órgão da Igreja Evangélica, e também foi feito na cidade de Barmen. Atualmente, a Casa das Artes está em busca de patrocínio de pessoas físicas ou empresas para custear a restauração do instrumento. Interessados podem entrar em contato pelo telefone (51) 3056 2086.

Um outro instrumento que foi doado à Casa das Artes, um piano da marca brasileira Essenfelder, está à venda. “Precisa de manutenção e não tem sido usado, fato que me causa grande compaixão. Está guardado porque temos um de cauda na galeria principal”, explica a tesoureira Isabel Zanetti. Uma postagem foi feita no Facebook da Casa das Artes para venda da peça, mas ela segue disponível. Está à venda por R$ 3 mil, e possíveis compradores podem conferir o instrumento na Casa das Artes Regina Simonis.

Piano de parede foi doação e está à venda
Desafinado: o conserto exige R$ 25 mil

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