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ISOLAMENTO EM FAMÍLIA

“Será que o Coelho pega coronavírus?”

Ilustração: Fernando Barros

Por força da coincidência no calendário, a quarentena impôs à humanidade a retomada de hábitos que, antigamente, já eram comuns nessa época devido à quaresma. Os mais antigos lembram que, no transcorrer dos 40 dias que antecedem a Páscoa, evitava-se as festas, os bailes e outras diversões. Porém, abdicava-se disso tudo por fé e devoção. Agora, tivemos que fazê-lo pela necessidade imposta pelo coronavírus. Mas, em ambos os casos, há um sentido de sacrifício, de esforço pessoal em prol de algo que se mostra imprescindível – no caso dos dias de hoje, salvar vidas.

Ainda não consigo avaliar até que ponto essa nova rotina, imposta pelo risco do coronavírus, minou o espírito pascalino. A Missa de Ramos, por exemplo, tão cara aos mais devotos, este ano foi online e sem as tradicionais procissões que, para os cristãos, relembram a lição de humildade de Jesus ao chegar na imponente Jerusalém sobre o dorso de um burrico. E o peixe da Sexta-feira Santa teve que ser adquirido em meio a uma série de cuidados.

Lá em casa tentamos manter, dentro das limitações impostas pela quarentena, a magia da Páscoa. As crianças confeccionaram na mesa da cozinha coelhinhos de papel e algodão que, em anos anteriores, eram feitos em sala de aula. Também montaram a árvore pascalina, com cestas de ovos pintadas à mão encaixadas em um galho seco. Minha esposa, Patrícia, que mantém contato com bastante gente via redes sociais, comentou que várias famílias têm feito o mesmo.

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Contudo, talvez por conta das mudanças drásticas na rotina, houve um descuido em relação a um detalhe antes costumeiro na quaresma: o Coelho da Páscoa, que geralmente rondava a casa nesta época, deixando pelo caminho suas pegadas, chumaços de algodão e algumas guloseimas, custou a aparecer este ano. Foi Ágatha a primeira a notar sua ausência.

– Pai. Será que o Coelho da Páscoa também pega coronavírus? – quis saber a caçula.

– Poxa, filha… não sei…

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– Pois é… Ele não tem aparecido. Deve estar se cuidando também. Mas será que no dia de Páscoa, vai nos visitar?


Isso me fez lembrar de outra Semana Santa, há uns dois ou três anos, quando a Patrícia encontrou no fundo de um armário uma fantasia de Coelho da Páscoa, confeccionada com espuma, já usada em períodos pascalinos mais antigos. Decidiu vesti-la para testar a reação da caçula e se posicionou na varanda dos fundos, do lado de fora da janela da cozinha. Escurecia e, pelo lado de dentro, via-se apenas a silhueta do coelhão, com suas longas orelhas balançando.

O início da operação, contudo, foi tenso. O primeiro a perceber o estranho visitante não foi Ágatha, e sim nosso boxer, que avançou pela varanda rosnando e ensaiando um bote ao Coelho da Páscoa.

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– Calma, Hércules. Sou eu – sussurrou o Coelho.

E então, Ágatha surgiu na cozinha e deu com o vulto orelhudo, do outro lado da janela. Ficou paralisada, com olhos arregalados.

– Paiiii – chamou, baixinho. – Acho que é o Coelho…

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Quando a silhueta abanou, Ágatha retribuiu. E até sorriu, depois que o vulto arremessou um punhado de guloseimas para dentro da cozinha. Mas manteve prudente distância em relação ao visitante.

– Estou com um pouco de medo – confidenciou-me, aos sussurros.

Depois que o Coelho se foi, a caçula passou a narrar à mãe a estranha visita, exibindo os doces como prova do que dizia. Mas então interrompeu o relato e encarou a Patrícia com um olhar inquisidor.

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– Mãe, onde você estava esse tempo todo???

Patrícia desconversou, alegou que estava no banho. Mas não amenizou a desconfiança.

– No banho, é? – insistiu a caçula. – Tem certeza de que não estava na janela, com uma fantasia de coelho? – E revelou o grande motivo de suas suspeitas: – As mãos daquele coelho não eram peludas…

No entanto, acabou, enfim, convencendo-se de que havia topado com o verdadeiro Coelho da Páscoa. E, no dia seguinte, relatou o episódio às irmãs mais velhas, que já dormiam quando ocorreu a misteriosa aparição. Ao ouvir o relato, a Yasmin, 1 ano mais velha que Ágatha – e bem mais cética –, franziu o cenho antes de me alertar:

– Pai, melhor reforçar as cercas. Pelo visto, alguém invadiu nossa casa…


Hoje, enquanto escrevo este texto, seguimos confabulando, eu e a Patrícia, acerca de como será a visita do Coelho neste domingo de Páscoa. Certamente ele aparecerá de madrugada, enquanto a criançada dorme, para esconder os ninhos. Porém, por ser meio descuidado, esquecerá de limpar as patas ao entrar e, como faz todo o ano, deixará pegadas por toda a casa, denunciando por onde andou e facilitando a localização dos ovos de chocolate.

Ou talvez deixe enigmas, escritos em bilhetinhos, que levarão a outros bilhetinhos com mais enigmas, provocando uma caçada a pistas que, enfim, revelará onde estão os ninhos. Trata-se de uma operação bastante complexa, que, em anos anteriores, ocupou as crianças ao longo de toda a manhã de domingo.

Entretanto, se o Coelho optar por esse estratagema, espero que lembre-se de imprimir os bilhetinhos com o texto digitado, ou que peça à Mamãe Coelho para escrevê-los. Em anos anteriores, houve queixas porque a letra do Coelho é muito feia, difícil de compreender. Pudera. Para uma criatura com patas no lugar de mãos, não deve ser fácil escrever…

Também defendo que o Coelho desista da ideia, já cogitada em outras ocasiões, de esconder os ninhos no quintal. Beneficiado pelo faro apurado, Hércules é muito bom em seguir pistas e poderá se antecipar às crianças na caçada aos ninhos.

Enfim, seja como for, a magia da Páscoa vai prevalecer. Mesmo em quarentena.

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