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Isolamento em família

São João na pandemia

Eis que mais uma tradição antiquíssima está para ser quebrada pela pandemia. A festa de São João, uma das preferidas das crianças e de muitos adultos Brasil afora, tornou-se impraticável por conta dos perigos da aglomeração. O 24 de junho, amanhã, será de sanfonas silenciadas, chapéus de palha guardados nos armários, fogueiras apagadas. O milagre da caminhada sobre as brasas não terá vez neste inverno – o milagre que se espera, aliás, é outro.

Por falar nisso, algo que sempre me intrigou, no São João, é a opção por homenagear justamente esse santo com tanta festa. Sabe-se que São João Batista vivia no deserto, comia gafanhotos, fazia penitência e ralhava com os fariseus. Ele não mandava dizer. Com sua voz grave, era duro e franco em suas reprimendas. Não me parece o tipo que gostaria de dançar forró, de tomar quentão e comer tapioca. Mas, enfim, a festa pegou, para a alegria da meninada.

Lá em casa, a suspensão das comemorações tornou-se um aborrecimento para as gurias, que, em anos anteriores, preparavam-se com antecedência para o São João da escola – arrumavam camisas xadrez e chapéus de palha com tranças postiças, e cosiam falsos remendos em calças ou vestidos. Para completar o figurino, horas antes da festa, punham-se a marcar pintinhas nas bochechas, que também recebiam generosa camada de maquiagem cor-de-rosa. Nunca se preocuparam, contudo, com a tradição de pintar os dentes – a própria natureza se encarregava de deixá-las meio banguelinhas, com a queda de um ou outro dente de leite, tempos antes.

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A brincadeira predileta, claro, sempre foi a pescaria. Para os pequenos, é um momento de êxtase, de alegre expectativa pelo brinde içado como se fosse um peixe. Mas a festa também tem seus momentos tensos, conforme a caçula, Ágatha, relatou-me certa vez:

– Este ano também vai ter cadeia.

– Cadeia?

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– E xerifes. Se nos pegam, colocam em uma jaula e é preciso ficar um tempo ali, esperando a soltura. Mas, se pagar uma taxa aos xerifes, nos deixam sair mais cedo da prisão.

Ágatha, porém, ágil e atenta, não se deixou apanhar, livrando-me da necessidade de desembolsar o valor da fiança.

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Já escrevi em outras ocasiões que a caçula tem por hábito fazer calendários para acompanhar a aproximação de datas especiais. Com o São João não foi diferente. Seria mais uma ocasião, cuidadosamente assinalada no calendário, a passar em branco devido à pandemia, não fosse uma ideia da Patrícia: fazer um São João em família, só entre nós e as crianças. Sem visitas, pois a situação da pandemia ainda é muito preocupante. Como somos seis lá em casa, já dará uma festinha que promete lotar a sala.

E Ágatha já apresentou suas exigências para o cardápio:

– Tem que ter rapadura, milho verde e paçoquinha. Não adianta virem só com pipoca, pois isso se come todo o dia.

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As gurias também planejam pendurar algumas bandeirolas e a meu cargo ficou a missão de arrumar um caniço para a pescaria. Penso em disponibilizar minha vara de pesca, com molinete e tudo, para dar um tom mais realista. Mas terei de substituir o perigoso anzol por um gancho mais seguro. Também avisei que fogueira no chão da sala não vai rolar.

Será, enfim, uma festinha discreta, familiar, franciscana, sem grandes estripulias e comezainas. Talvez mais ao gosto de São João Batista.

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