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RICARDO DÜREN

Hércules e os fantasmas

Ágatha anda intrigada com certos hábitos do Hércules, nosso boxer. A caçula revelou sua inquietação dias atrás, após dar-se conta de que, com relativa frequência, Hércules se coloca a contemplar o vazio, como se estivesse vendo alguma coisa que ela, por mais que se esforce, não vê. Não raras vezes, durante esse intrigante transe canino, o boxer rosna e late para o nada, deixando Ágatha ainda mais cismada.
– Pai, será verdade que os cães veem fantasmas? – veio me perguntar. – Será que o Hércules os vê?
– Não, Ágatha – tranquilizei-a. – Hércules não vê fantasmas.
– Por que não? – insistiu a traquinas.

Enquanto buscava uma resposta, lembrei-me do padre Quevedo, parapsicólogo espanhol falecido ano passado, que fez sucesso na televisão, em programas onde desmascarava curandeirismos e supostas aparições demoníacas. E tasquei:
– Porque los fantasmas no “eczisten”!

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Expliquei então que os cães têm sentidos bastante apurados e, pela audição e olfato, são capazes de detectar pessoas ou outros animais a longas distâncias, bem longe do nosso campo de visão.
– Quando o Hércules está assim, concentrado ou latindo para o nada, certamente escutou ou farejou alguma coisa que está bem longe daqui – argumentei. – A ciência explica.
A caçula concordou, mas também apresentou outra hipótese, bem mais simples:
– Ou, talvez, ele faça isso por ser um bobão mesmo…

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Depois, contudo, pesou-me a consciência pela forma abrupta como impus meu ceticismo sobre algo que, talvez, fosse parte do mundo mágico da caçula. Afinal, fantasmas, bruxas, fadas, duendes e outros seres fantásticos integram o panteão do imaginário infantil.

Vejam só o curioso exemplo do Scooby-Doo, animação que marcou a infância de várias gerações: os enredos sempre giram em torno dos esforços da diligente Velma em desvelar, com uso da lógica e da ciência, vigaristas que forjam aparições fantasmagóricas para dar algum golpe. Contudo, o protagonista das histórias é um ente fantástico – um cachorro que fala, fato encarado por seus amigos humanos com a maior naturalidade.

Mesmo o mundo adulto torna-se mais divertido e interessante quando deparamo-nos com a possibilidade do extraordinário e do sobrenatural. Afinal, somos seres forjados, ao longo de milhares de anos, no magma dos mais diferentes mitos e narrativas fantásticas.

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Eu mesmo interesso-me por seres mitológicos (adivinhem quem batizou o boxer) e também por histórias de assombração. Qual não foi o meu deleite quando, ao visitar o Cemitério do Cedro, em Cortado, interior de Novo Cabrais, no ano passado, ouvi uma série de histórias de fantasmas que, segundo os moradores da volta, habitam o lugar.

Segundo uma lenda transmitida de geração em geração, durante a Revolução Farroupilha houve por lá uma violenta escaramuça entre rebeldes farrapos e soldados imperiais. Depois da luta, os mortos foram enterrados em uma cova rasa e, sobre ela, foi colocada uma tosca cruz feita com galhos de cedro. Da cruz teria brotado a imensa árvore que dá nome ao cemitério. Até aí, tudo tranquilo. Sabe-se que o cedro pode brotar de galhos verdes, isso é comprovado. E é bem provável que o combate realmente tenha ocorrido naquele lugar, pois os moradores já encontraram nas imediações do cemitério alguns artefatos militares antigos – uma ponta de lança, um cabo de adaga e até um mosquete.

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O lado B – sobrenatural – da história toda surgiu quando fui entrevistar uma nonna, bisneta dos imigrantes italianos que colonizaram Cortado. Ela me garantiu que os espíritos dos farroupilhas enterrados sob o cedro ainda circulam pelo cemitério, ajudando quem lhes pede bênçãos e apavorando os mal-intencionados.

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O causo mais impressionante envolve um grupo de malandros que, certa noite, invadiu o lugar para pescar no açude vizinho ao cemitério. Primeiro, os invasores começaram a escutar ruídos estranhos, de coisas caindo nos arredores das lápides. A seguir, passaram a ser alvos de coquinhos, abundantes nas palmeiras cultivadas no cemitério. Porém, insistente, o grupo fincou pé e não desistiu da pescaria clandestina. Até que gritos de dor, de gente ferida e desesperada, começaram a ecoar por todos os lados. Aí não teve jeito: os pescadores bateram em retirada, deixando para trás as tralhas de pesca.

Se acreditei na história? Não digo que acreditei totalmente, mas é fato que a narrativa existe, que foi concebida de alguma maneira e que, no fim das contas, é muito interessante e divertida.

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Mas então, porque tanta pressa em desmistificar, diante da Ágatha, que o Hércules vê fantasmas? Confesso que, na hora, pareceu-me o mais certo a fazer. Talvez, quem sabe, para preservar o sono da caçula de eventuais pesadelos com fantasmas – e assim preservar também o meu e o da Patrícia.

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Contudo, devo admitir também que, no fundo no fundo, ainda restou, após toda essa reflexão, uma última dúvida: Será que o nosso boxer realmente vê fantasmas?

Impossível saber. Ao contrário do Scooby-Doo, o Hércules não fala.

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