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Ricardo Düren

Ágatha contra o monstro

Entre as atividades com as quais nossa caçula, Ágatha, tem se entretido nessa longa quarentena está o hábito de desenhar. Dias atrás veio me mostrar alguns de seus desenhos, cada qual ocupando um lado inteiro de uma folha A4, todos bem coloridos com hidrocor. Explicou-me que fez as ilustrações com base em um sonho que assaltara-lhe o sono na noite anterior. Nele, a caçula, suas duas irmãs e o irmão combateram terrível monstro, com emprego de diferentes poderes e habilidades.

No primeiro desenho aparecia a Yasmin, vestida como o Robin Hood, com um longo casaco verde, um chapéu de mesma cor, enfeitado com uma pena vermelha e uma aljava recheada de flechas às costas. O longo arco estava depositado aos pés da heroína, a qual, mesmo na iminência do combate, trazia no rosto um sorriso matreiro, mantendo consigo o espírito zombeteiro pelo qual o Príncipe dos Ladrões era tão conhecido na Floresta de Sherwood.

O desenho a seguir era de uma fada, toda cor-de-rosa e com delicadas asas, a qual, segundo revelou a caçula, seria sua irmã mais velha, a Isadora. A personagem tinha sobre a cabeça uma coroa – o que indica que não era uma fada qualquer, mas a rainha das fadas – e, na mão direita, sua terrível arma: uma varinha de condão. A magia também era a arma do irmão mais velho, retratado como um mago, todo coberto com capuz e manto azuis, e equipado com um bastão capaz de pulverizar o inimigo ao disparar raios. A longa barba do mago, a descer-lhe pelo peito, sugeria também sua grande sabedoria, certamente herdada do pai.

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E então apareceu ela mesma, Ágatha, imponente em uma armadura de cavaleiro medieval prateada. O elmo encobria-lhe parte do rosto, mas tinha orifícios nas laterais por onde projetavam-se para fora longas mechas de cabelo encaracolado. E, ao alcance da mão, estava a espada. Uma espada capaz de gelar a espinha dos adversários, não tanto pelo comprimento, mas pelo longo gume, afiado a ponto de fatiar dragões como se fossem repolhos.

Mas, então, chegou a vez do monstro.

De tão grande, projetava-se para fora da folha A4, a qual se mostrava insuficiente para conter todas as formas da criatura. Mesmo assim, era possível divisar seu formato de ogro, com uma imensa pança, cabeça redonda, braços grossos e pés que terminavam em longas unhas afiadas e disformes. O rosto fechado da criatura evidenciava seu mau humor e, ao lado do desenho, uma palavra chama atenção: Tédio.

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– É o nome dele – esclareceu-me a traquinas.

– Mas por que esse nome?

– Ora… todo dia o Tédio vem nos aborrecer, e todo dia temos que espantá-lo.

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– E não é divertido?

– Que nada. É um tédio.

***

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Claro que os devaneios da caçula remetiam, no fim das contas, ao tédio da quarentena. Já são cinco meses sem aulas, sem passeios e sem visitas. Um mal necessário para evitar a disseminação do vírus, mas, de fato, um tédio. Paciência.

A mim, serve de consolo a esperança de que tudo isso termine o quanto antes e a vida volte, enfim, ao normal. Mas ao normal mesmo, não a esse tal de novo normal, com divisórias de plástico, placas de acrílico e marcações de distanciamento. Esses são, obviamente, dispositivos imprescindíveis enquanto durar a pandemia, mas não me agradam certas previsões de que tudo isso fará parte de nossa rotina para sempre, mesmo depois de vencida a Covid.

Refiro-me, por exemplo, à recente criação de cápsulas de plástico suspensas no teto, como copos de cabeça para baixo, dentro dos quais as pessoas acomodam-se à mesa para jantar com segurança, cada qual protegida, em sua cabine, dos espirros alheios. Uma ideia bem interessante para o atual momento, contudo, o que fazer com essa tralha toda depois que a pandemia passar? Ou a ideia é ficar para sempre dentro dessas redomas?

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Afinal, somos seres sociais que, há milênios, compartilhamos refeições, apertos de mão, abraços, beijos, vírus e bactérias – o que, aliás, também gera anticorpos e nos deixa mais fortes. O que me leva a crer, como bom leigo no assunto, que a manutenção de máscaras, acrílicos e redomas após a pandemia poderá nos deixar mais fracos, à mercê de outros vírus metidos a besta, ainda que menos perigosos do que o coronavírus.

***

Mas esse, enfim, é um assunto para infectologistas e demais especialistas na área, a decisão não caberá ao pai da Ágatha. E, principalmente, é uma questão para mais adiante, possivelmente, para depois da descoberta da vacina. Por ora, convém aguardar pela volta do normal fazendo nossa parte: usando máscara, lavando as mãos e mantendo o distanciamento – caso alguém ainda não saiba.

E lutando contra o monstro do Tédio com as armas à disposição: se não temos arco e flecha, poderes mágicos, armadura e espada, temos criatividade, lápis e papel, filmes e seriados, jornais e livros… e paciência. Vai passar.

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