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Romeu Neumann

A Copa que (quase não) vi

Dias atrás, mais uma vez, vi a resenha dos jogos da Copa do Mundo de 1970, disputada no México. Para muitos, algo tão distante no passado que sequer cabe no imaginário. Para os da nossa geração, um tsunami de emoções, uma explosão de felicidade a cada jogo, que culminou na conquista do tricampeonato mundial com um inapelável 4 a 1 sobre a Itália na grande final.

Foram seis jogos. Seis vitórias. Uma seleção com cinco jogadores que vestiam a camisa 10 nos seus respectivos clubes – Gerson, Rivelino, Tostão, Jairzinho e Pelé. Não por acaso, além de vencedora, é considerada a melhor seleção de todos os tempos. A seleção do Zagallo, reconheça-se. O mesmo que, anos mais tarde, criticado por setores da imprensa e questionado pelos torcedores, haveria de vociferar aos microfones: “Vocês têm que me engolir”! E foi campeão mundial de novo.

Naquele ano, no distante 1970, eu estudava no seminário, em Arroio do Meio. Éramos a turma mais avançada (quarto ano do Ginásio) de um contingente de quase 100 alunos. Todos, se me permitem a comparação, em rígido isolamento social. De agosto a dezembro. Sem acesso a jornais para ler, sem celular, sem internet, televisão só em domingos de chuva, quando não se podia praticar futebol, a única coisa que nos divertia, à exceção de esporádicos piqueniques ao longo de um ano inteiro.

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Mal conseguíamos dormir, à espera dos jogos da nossa seleção na Copa. Foi quando, a alguns dias da estreia, aconteceu o impensável. Durante uma prova de inglês, passamos, os alunos quase todos, a “trocar conhecimentos” uns com os outros. O professor, que a tudo assistiu, foi condescendente. Pediu moderação, mas não se opôs. Teria sido nada mais do que experienciar um pouco de adrenalina, não fosse a atitude inusitada (imperdoável, nós achamos à época) de um colega que, ou porque se sentiu prejudicado, ou por drama de consciência, ou porque não gostava de futebol – vai saber! –, entregou toda a turma para a direção.

Denúncia feita, dispensadas quaisquer contraposições ou atenuantes, veio o julgamento e o veredicto. Implacável. A sentença nos proibia de assistir a qualquer dos jogos da nossa seleção. Isso mesmo! Depois de anos de espera, quando finalmente veríamos uma Copa do Mundo (a primeira a ser televisionada), estávamos impedidos de acessar o recinto onde estava instalada a única televisão do internato, mesmo que fosse para ver uma imagem cheia de chuviscos e em preto e branco. Tudo por causa de uma “colinha”.

O que, afinal, poderia ser mais cruel que isso? Alguns pensamos em desistir dos estudos e voltar para casa. Deixar de ver a seleção do Pelé? Que ainda tinha Carlos Alberto, o capita, o Clodoaldo voando em campo e o nosso Everaldo? Fora de questão!

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Mas aí dormimos uma noite, mais uma, e, entre uma conversa e outra com o travesseiro – e com a consciência –, chegamos à conclusão de que o melhor a fazer era acatar a decisão. Resignados e humilhados a cada gol que os nossos colegas pirralhos festejavam naquele histórico 4 a 1 sobre a Tchecoslováquia, na estreia, ouvimos a narração pelo rádio. E tivemos que tolerar as provocações que ouvíamos, depois do jogo e nos dias que se sucederam, pelo humilhante castigo que nos foi imposto.

Veio o segundo jogo. Todos correndo para a sala de TV e nós barrados outra vez. Que nos dessem uma nota zero naquela prova e já teríamos aprendido a lição, reclamávamos em silêncio. Mas, antes que a nossa seleção derrotasse os ingleses, então campeões mundiais, aconteceu… Bem, o motivo desta narrativa. Estávamos, repito, resignados, ouvindo a transmissão do jogo pelo rádio, abrigados num ponto coberto do pátio, quando chegou o reitor da instituição. Lembro que havia uma certa expressão de piedade no seu rosto quando perguntou: “Estão arrependidos?”. Além de um uníssono “siiiiiiiim”, alguém teve coragem e falou: “Nós erramos. Perdoe-nos”!

Foi constrangedor, mas ficou a lição. Reconhecer um erro – e todos erramos, a qualquer momento, seja qual for a situação – é a forma mais eloquente e eficaz de pedir perdão. E de ser perdoado. É difícil, doloroso até, mas necessário. Reconhecer um erro é descer do pedestal da vaidade, é despir-se da idolatria ao próprio ego, é assumir a fragilidade diante das provações da vida, enfim, é ser humano.

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Para nosso alívio, o reitor também entendeu assim, se compadeceu, e finalmente pudemos assistir pela televisão aos jogos restantes da Copa que quase não vi. E que nos sagrou tricampeões mundiais!

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