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Homenagem

Segue o rumo do teu próprio coração

Talvez se possa contar nos dedos os gaúchos da minha geração, aqueles já entrados nos 40, como se diz, que não tenham entre suas lembranças mais calorosas da infância aquela saudação que encerrava um dos programas de maior audiência na televisão no Rio Grande do Sul: “Até domingo que vem, gaúchos e gaúchas de todas as querências”. Assim despedia-se, na tela, o ilustre Antonio Augusto Fagundes, apresentador do Galpão Crioulo. 

Com essas palavras transformadas em bordão de despedida no cotidiano, em todos os recantos do Estado, tínhamos, todos nós, na imagem do Tio Nico, como era chamado, um amigão que, por transmitir tamanho calor humano e por abrir espaço às manifestações musicais, artísticas e culturais (danças, declamação), era, de fato, ele próprio, um gaúcho de todas as querências – logo, alguém íntimo em nossas famílias.

Nascido em Alegrete, imortalizou sua terra natal com uma das canções que, por extensão, transformou-se em hino de todos os sul-rio-grandenses. Nos mais variados recantos do País pode-se ouvir gaúchos que se transferiram para as novas fronteiras do agronegócio brasileiro repetirem, quase como um mantra: “Não me pergunte onde fica o Alegrete, segue o rumo do teu próprio coração”. Esses dois versos viraram um emblema, um símbolo, para a caminhada de cada um de nós, em busca da realização de seus sonhos e da sua felicidade.

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E eis que, muitos anos depois daqueles mágicos domingos de infância na região serrana de Agudo, a vida me brindou com o acaso de conduzir a edição de livros deste querido Nico Fagundes. Pela Editora Gazeta, foram viabilizados dois de seus títulos, em seleção de conteúdo criteriosamente feito por ele próprio, ao lado da esposa Ana. “Águas da minha terra”, conjunto de poemas e canções, foi lançado em 2013, com estrondoso sucesso na sessão de autógrafos no Theatro São Pedro. Em 2014, apostara na edição de um novo volume de contos, ao qual agregou o inusitado título de “Os dez putos de Bagé”, extraído do título de uma das narrativas curtas. Por sinal, a ilustração da capa, uma caricatura alusiva ao título, fora feita por ele, de próprio punho, e de forma exclusiva para a edição. Tinha-se, nesses dois livros, reafirmada a condição de poeta e de escritor deste que sempre foi reconhecido como um dos grandes folcloristas e cantores do Rio Grande do Sul, integrante do grupo Os Fagundes.

Agora, Nico acaba por nos deixar. Faleceu ontem à noite, um guerreiro entregando-se ao repouso, aos 80 anos. Ele sofrera um acidente vascular cerebral em 2000, em decorrência do qual apresentava algumas leves limitações de movimentos – que, no entanto, jamais o impediram de seguir tocando uma rotina de criação e de viagens e compromissos por todo o Estado. Por ocasião do lançamento do livro de poemas, depois de vários anos sem ter publicado, veio a Santa Cruz do Sul, em 2013, para a Feira do Livro, numa tarde de domingo muito chuvosa na Praça Getúlio Vargas. Deu autógrafos, conversou com leitores e admiradores.

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No processo de finalização dois dois livros, em várias ocasiões tive grato contato com ele e com a esposa, Ana. Nico era de uma simpatia e de um calor humano ímpares, raros, e só por aí já é possível compreender a riqueza e a grandeza de sua trajetória artística e pessoal. Tradutor, e dos grandes, versou para o português uma das edições mais bonitas e mais prestigiadas do Martin Fierro, de José Hernández, obra-prima da literatura argentina. Era um grande leitor, de olhar panorâmico muito acurado sobre a literatura latino-americana e sobre os clássicos internacionais. Com essa bagagem tão sólida, foi traduzindo em poemas e canções a leveza e a alegria que são o fermento da vida.

Lembro, em particular, de uma passagem tão afetuosa e tão significativa da integração cultural que ultrapassa países. Em 2014, em plena Feira do Livro de Porto Alegre, Nico tinha sessão de autógrafos de seu volume de poemas no Centro Cultural CEEE Erico Verissimo. O escritor chileno Antonio Skármeta, que igualmente se encontrava na capital, para lançamento do volume Nem te conto II, tratou de ir prestigiar o seu xará gaúcho. Estavam lá, no mezzanino, dois Antonios, lado a lado, trocando impressões recíprocas sobre suas obras. 

De Nico, nessa hora, ficam-me repercutindo na memória os primeiros versos do primeiro poema de “Águas da minha terra”, justamente chamado “Eu me chamo Antonio Augusto”: “Eu me chamo Antonio Augusto, Da Silva Fagundes sou. / Do finado meu avô / Ganhei esse nome justo”. Nome justo, para uma justa caminhada pessoal, para uma justa fama no cenário cultural gaúcho, e para as justas homenagens que, ano após ano, haverá de receber da sociedade sul-rio-grandense. Descansa em paz, tio Nico. Tua obra fica, e seguirá nos enriquecendo, nos fazendo lembrar sempre de ti.

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UM POEMA 
de Antonio Augusto Fagundes
(do livro “Águas da minha terra”, pela Editora Gazeta)

“Eu me chamo Antonio Augusto”

Eu me chamo Antonio Augusto
Da Silva Fagundes sou.
Do finado meu avô
Ganhei esse nome justo.
Tão antigo e tão vetusto,
Outro assim não haverá.
Sou cruza de boitatá
Decerto com lobisomem
E em vez de aqui ir meu nome,
Vai “Rodrigo Cambará”.

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