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Literatura

ENTREVISTA: o que pensa um dos autores mais respeitados do Brasil

Do mundo árabe, como descendente de libaneses, ele retira elementos de inspiração que remetem às tradições culturais do Oriente. Da Amazônia, sua terra natal e a paisagem na qual cresceu e firmou seu imaginário, vem uma segunda força criadora e afetiva. Entre esses dois universos, que se mesclam em sua condição de cidadão brasileiro, o escritor Milton Hatoum, nascido em Manaus, capital do Estado do Amazonas, divide sua atenção. Em sua obra, e no posicionamento enquanto intelectual e formador de opinião, recupera memórias que se amarram em enredos ficcionais, e busca advertir para a derrocada da floresta e dos povos que ela acolhe.

Aos 67 anos, leonino nascido no dia 19 de agosto de 1952, Milton Assi Hatoum firmou-se na cena cultural brasileira de maneira mais efetiva a partir do ano 2000, quando lançou seu segundo romance, Dois irmãos. Centrada na relação conturbada entre os irmãos referidos no título, os gêmeos Yaqub (o mais velho entre ambos) e Omar, em família de ascendência libanesa fixada na realidade de Manaus, que o autor conhece tão bem, a obra vivificou na literatura ou no imaginário nacional uma cultura presente só de forma esporádica na arte brasileira.

Hatoum lembra que o paulista Raduan Nassar, no incensado Lavoura arcaica, e o catarinense Salim Miguel, em Nur na escuridão, lidaram com personagens de ascendência árabe. Ele próprio já o fizera em seu primeiro romance, Relato de um certo Oriente, de 1989, livro que em 2019 completou seus 30 anos de publicação, marco na estreia literária de Hatoum.

Mas foi efetivamente o romance Dois irmãos que o projetou, e nos anos seguintes à publicação rendeu a Hatoum importantes prêmios, entre eles o Jabuti. Mais do que isso, proporcionou ampla visibilidade ao autor, com a adaptação para o teatro, em 2008, com direção de Roberto Lage; a posterior adaptação para quadrinhos, em 2015, pelos irmãos Gabriel Bá e Fábio Moon, que conquistou o Eisner Award, uma espécie de Oscar dos quadrinhos, pela edição norte-americana; e ainda a ampla e positiva repercussão da minissérie exibida pela TV Globo em 2017.

PAULISTA

Tudo isso deu visibilidade à obra de Hatoum como um todo, como ele salienta em entrevista exclusiva concedida ao Magazine, por telefone, a partir de sua residência, em São Paulo. Está radicado na capital paulista há 21 anos, desde o momento em que se dedicava à elaboração de Dois irmãos. Havia se fixado no Sudeste após os estudos secundários e, mais tarde, após andanças por outros países (Espanha, França…), voltou para lecionar e dedicar-se ao doutorado. Abandonou tanto a tese quanto a atividade docente para, de forma corajosa, apostar na literatura.

E nunca deixou de prestar atenção a tudo o que acontecia em sua terra natal, no coração da Amazônia. E o que via e ouvia, confessa, o deixava cada vez mais apavorado, mesma reação e mesmo sentimento que lhe inspiram as recentes notícias de devastações da floresta e das culturas que ela hospeda. Esteve em Manaus e passeou pelo Rio Negro no início deste ano, e se diz impressionado com a degradação urbana de sua cidade natal.

Em São Paulo, adotando rotina bastante caseira, finaliza o terceiro volume de uma trilogia, O lugar mais sombrio, da qual foram publicados os dois primeiros títulos, A noite da espera, em 2017, e Pontos de fuga, em 2019. É de sua expectativa que a parte final esteja publicada ainda em 2020. Explica que o conjunto vem sendo elaborado há mais de uma década. No entanto, como resultara em cerca de 800 páginas, houve a opção de separar o todo em três partes, publicando-as em forma de trilogia.

Sua literatura repercute amplamente, é traduzida e referida de forma recorrente em eventos e seminários. Mas Hatoum é marcado pela síntese: com a conclusão da trilogia, terá editados sete romances (em 30 anos), além de um livro de contos (A cidade ilhada), revelando que elege o aprimoramento ou o acabamento dos enredos em lugar de quantidade de publicações, um tanto na contramão do que ocorre em um país no qual autores atropelam-se a publicar vários títulos por vezes em um mesmo ano.

Na conversa por telefone, abordou ainda peculiaridades de seu processo literário e avaliou a importância dos elementos familiares que o ligam à cultura árabe, seja a libanesa ou a das demais nações dessa instigante região. Enfatizou ainda seu desencanto com a destruição da Amazônia, afinal sua terra natal, que guarda uma riqueza ambiental e social praticamente incalculável – e que, a depender da devastação em curso, a sociedade nunca nem saberá exatamente tudo o que perdeu, diante da dizimação inconsequente e irrefreável.

Entre a Amazônia e o mundo árabe Hatoum se divide, para lá são atraídos seu olhar e seu afeto, e por meio de sua literatura ele convida leitores a fazerem o mesmo. Para, de preferência, passarem a atuar como agentes de mudanças, num esforço em favor de um mundo mais habitável.

O QUE LER

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Obras de Milton Hatoum*
Relato de um certo Oriente, romance, de 1989
Dois irmãos, romance, de 2000
Cinzas do Norte, romance, de 2005
Órfãos do Eldorado, romance, de 2008
A cidade ilhada, contos, de 2009
A noite da espera, romance, de 2017
Pontos de fuga, romance, de 2019

*Todos publicados pela Companhia das Letras

Mundo árabe

Além de escritor e professor, Hatoum é tradutor, tendo versado para o português Gustave Flaubert, Edward Said, George Sand e Marcel Schwob. Da literatura de origem árabe, com a qual está ligado por laços de família, aponta o libanês Elias Khoury, contemporâneo de sua geração (Khoury está com 71 anos), como dica de leitura. De Khoury, no Brasil, pode-se ler Porta do sol e Yalo, o filho da guerra, editados pela Record. E para o clube de leitura TAG, de Porto Alegre, Hatoum indicou o livro do romancista sudanês Tayeb Salih, Tempo de migrar para o norte, originalmente publicado pela Planeta. Dentre os libaneses, outra indicação é a do ficcionista e ensaísta Amin Maalouf, que possui vários de seus romances traduzidos no Brasil.

ENTREVISTA

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Milton Hatoum
Escritor

Magazine – Como é sua rotina hoje?
Milton Hatoum – Moro há 21 anos em São Paulo. Vim para cá ao final de 1998, para terminar um doutorado, que acabei abandonando para escrever o Dois irmãos. Comecei o doutorado e parei para escrever o romance, porque não conseguia conciliar a atividade acadêmica e a pesquisa para o doutorado com a escrita do romance. E apostei muita coisa, porque pedi exoneração da universidade, como professor, do emprego estável, uma decisão arriscada num país instável como o Brasil. Mas o Dois irmãos me salvou, de algum modo.

Trouxe retornos…
Isso, e até de adaptação para o teatro, para quadrinhos, para o cinema. Penso que inclusive em termos de repercussão junto a meus leitores, e os professores de literatura acho que gostaram do romance. Mesmo aí no Rio Grande do Sul ele esteve na lista de leituras obrigatórias para o vestibular na Ufrgs. Em Santa Catarina também, em Goiás, em várias universidades. O Dois irmãos é um romance que foi muito lido por jovens. E isso me permitiu viver modestamente de literatura, pois a universidade me tomava muito tempo. Eu não tinha na verdade tempo para ler minhas coisas, escrever, e isso me angustiava um pouco.

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O senhor é identificado como descendente de libaneses. Como é a sua relação hoje com o mundo árabe?
No começo, isso era o que estava mais próximo de mim, da minha vida. Cresci numa família de imigrantes, ouvindo várias línguas, o árabe, o francês e o português. Isso me marcou. Nos dois primeiros romances tentei problematizar mais do que exaltar, tentei escrever dramas familiares a partir da minha experiência. E, no entanto, me considero um mestiço, como todos os brasileiros; sou de muitas origens, até mesmo a amazônica. Minha alma não é só a da imigração; ela tem muito a ver com a Amazônia, com minhas referências de Manaus, com a infância. E nós somos tudo isso misturado. Nossas letras são mestiças também.

E a segunda referência é justamente a Amazônia… O senhor se sente comprometido com esse universo?
Sempre foi uma questão para mim. Em 1978 publiquei um livro de poesia, com fotos de três amigos, paulistas, que viajaram pela Amazônia, e alguns poemas já são muito sombrios e pessimistas. Quem estava ligado à Amazônia, à questão socioambiental, já percebia que seria uma catástrofe, como de fato está sendo. Isso faz mais de 40 anos. Desde então, quando posso, falo sobre isso. E, como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, concordo plenamente com ele, os povos indígenas estão enfrentando a sua última batalha. Isso de Norte a Sul, mas a Amazônia é o lugar da devastação. Continua sendo de extrativismo bruto, dos mais predadores e cruéis, e não há nenhum retorno para a população da Amazônia.

Em relação à Amazônia, seu olhar é bastante pessimista, então?
Não há como ser otimista diante de tanta agressão, diante dessa política predadora. Aliás, nenhum governo anterior refletiu sobre a Amazônia ou teve ou elaborou um projeto sobre a Amazônia, pensando no seu desenvolvimento, não só sustentável, sobretudo humano, contemplando as populações ribeirinhas, os indígenas, os caboclos, a população de modo geral. Nenhum governo pensou na Amazônia assim. Mas é também verdade que este governo é o mais predador de todos os que já vimos, mais inclusive do que os governos da ditadura. Aliás, a catástrofe começou lá, nos anos 70. Então, não tenho nenhuma razão para ser otimista. Ao contrário. As políticas públicas na Amazônia foram catastróficas.

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O senhor trabalha no terceiro volume da trilogia O lugar mais sombrio?
Estou revisando o terceiro volume e espero entregá-lo ainda este ano. Como escrevi praticamente tudo nesses dez, 11 anos, agora estou fazendo a revisão, e aí dá um pouco de trabalho também. A partir de 2007, começo de 2008, quando fiz o projeto do romance, não era uma trilogia, mas cresceu muito e aí não podia publicar um romance de 800 páginas; seria um pouco estranho do ponto de vista editorial. Conversei com meus editores e chegamos à conclusão de que poderia fazer cortes, dividi-lo em três volumes, e acho que foi uma saída interessante.

Em entrevista, o senhor chegou a dizer que talvez iria parar de escrever…
Na verdade, falei isso numa entrevista longa à Folha de S. Paulo, estava muito cansado e o repórter me perguntou o que iria fazer depois da trilogia. E eu disse: olha, acho que mais nada (risos). Mas tenho vários contos que gostaria de reescrever, pretendo também publicar um livro de ensaios e, bom, acho que não me aventuraria mais num romance de 300 páginas. De 800, nem pensar. Agora, parar de escrever… Alguns conseguem parar, e acho corajoso. É até um ato de honestidade para consigo mesmo. Eu não escreveria se de fato não tivesse mais nenhuma questão interior ou do passado da minha memória que possa ser transformada em ficção. Se não tiver isso, não escrevo. Eu não vou falsear. O leitor percebe quando isso acontece, quando não é um texto, uma narrativa, que tenha alguma verdade, pelo menos, alguma vivência transformada em linguagem.

A literatura segue como um espaço de resistência?
A arte, primeiro, não tem uma utilidade, ela não é feita para ser consumida pelo mercado. A arte é elaborada pela imaginação, pela linguagem, e, portanto, ela é desinteressada, do ponto de vista do sistema, do mercado. Eu, particularmente, não gosto de literatura de denúncia, acho que isso empobrece o texto. Uma literatura ideológica torna-se muito menos complexa, e mais rasa. Os bons livros interrogam e questionam muito mais do que explicam, porque o leitor não gosta de explicação. A arte sempre parte do mito, a literatura tem uma ligação profunda com o mito. E depois a memória e a imaginação, por associações, elas têm um lado sensorial na linguagem. Foge do factual, do circunstancial. Toda literatura muito circunstancial empobrece. E geralmente uma leitura que quer ser apenas política atrofia um pouco a dimensão humana que os escritores tentam dar aos personagens. Não pode ser didático. A gente lê os mestres, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Dyonélio Machado, os estrangeiros, para aprender alguma coisa. Porque é com os escritores e as escritoras que a gente aprende. Além da vida, a gente aprende lendo.

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