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Literatura

Cristovão Tezza refina estilo em ‘A Tensão Superficial do Tempo’

Cristovão Tezza é natural de Santa Catarina

Ao longo dos anos, a escrita de Cristovão Tezza vem se tornando cada vez mais sofisticada – se em O Filho Eterno (2007), sua obra mais premiada, o trabalho de linguagem revela as limitações físicas e intelectuais de uma criança com síndrome de Down com uma objetividade clínica, em A Tensão Superficial do Tempo, o mais recente livro, a narrativa é construída de forma a contar uma história que encobre uma outra, invisível. Para isso, bastou ao escritor catarinense ordenar com precisão as palavras e escolher corretamente os caracteres tipográficos.

A trama se passa em setembro de 2019 e, ao longo de 272 páginas, o leitor acompanha cerca de 30 minutos da vida de Cândido, um professor de química especialista em piratear filmes na internet que está sentado em um banco de um parque em Curitiba. Amargurado, ele sofre uma crise pessoal provocada pelo fim amargo de seu casamento. E, ao tentar unir os fios desencontrados que o levaram a tal condição estanque, Cândido reconstrói, diante do leitor, naquela meia hora, a própria história.

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É nesse jogo de camadas que Tezza revela sua destreza literária – enquanto mostra como Cândido busca juntar os cacos de uma existência estagnada, a narrativa revela diversas formas de angústia, da mais pessoal à coletiva, reflexo de um momento, o ano de 2019, em que a sociedade brasileira já se polarizara em todos os aspectos e que se reflete na comunidade de professores da qual Cândido faz parte – as menções a Trump e Bolsonaro, aliás, reforçam o aspecto mais realista do texto. Sobre esse trabalho, Tezza respondeu por e-mail às seguintes questões.

Não é irônico o fato de um pirata de filmes se chamar Cândido?
No Brasil, diante das criminalidades oficial e laica, a ilegalidade de um pirata caseiro baixar filmes para abastecer a mãe de 80 anos não chega a ser um crime de lesa-pátria. Mas o nome Cândido surgiu antes na minha cabeça, a partir da fratura amorosa, que é o eixo do romance. E, é claro, o paralelo com o personagem de Voltaire é inevitável, no caso mais pela ingenuidade do que pelo otimismo.

A trama, aliás, trata de uma relação amorosa que se despedaçou e de uma paixão inquebrantável pelo cinema. Como foi lidar com paixões assim tão fortes?
Desde sempre, a paixão e o amor estão no centro de quase toda literatura. Nos meus livros, gosto de investigar o contraste entre racionalidade e emoção. Frequentemente, meus personagens são brilhantes e centrados em suas atividades mentais, e fracassados ou frustrados na vida concreta. O cinema entrou no livro como um tema paralelo que acabou invadindo a narrativa inteira. Bem, o cinema exerce uma influência avassaladora na nossa cultura, em praticamente todas as esferas da vida. Para mim, sempre foi uma presença constante, ainda que caótica e, digamos, não intelectual – gosto de ver imagens em movimento e adoro fotografia. E só escrevo o que eu vejo. No caso deste romance, eu tinha na cabeça apenas dois fotogramas, a primeira e a última cena, e um vago roteiro.

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A escrita cumpre a tarefa de conduzir a narrativa ao mesmo tempo que é elaborada, com o uso do itálico para designar falas. Como foi esse processo?
Sempre fui um escritor instintivo. Não tenho muito controle prévio dos meus livros, e tenho sempre a sensação de que a minha voz literária avança por conta própria. Basta escrever a primeira frase e o escritor já começa a amarrar a si mesmo na teia que inventou. Cada livro cria a sua linguagem. No caso de A Tensão…, a estrutura narrativa se faz inteira sobre a percepção caótica da cabeça do Cândido, num cruzamento permanente de tempo e de espaço, que é mais ou menos como funciona nossa cabeça solta no dia a dia. Nossa cabeça é um caleidoscópio de cacos da memória e da vontade. Obviamente, isso não pode ser simplesmente “transcrito”, porque seria incompreensível – a literatura cria uma representação do caos, uma imagem, e não o próprio caos. Ela torna inteligível, pela linguagem, o que parece não ter sentido.

E o uso dos itálicos?
Eles são o terror dos meus ótimos revisores. Não há uma regra universal para eles nos livros – é o instante narrativo que determina o seu uso, quase sempre para separar falas e vozes naquele contexto imediato. Mas, muitas vezes, é uma entonação que destaca uma palavra ou frase no momento em que eu escrevo, como se eu trabalhasse em voz alta e estivesse num palco. Claro, na releitura necessariamente fria da revisão, muito é refeito e retificado. Mas o espírito permanece.

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Tensão superficial é o efeito físico que parece dar uma pele à água e que permite, por exemplo, que alguns insetos “andem” sobre ela. Ao adaptar esse efeito ao tempo, a ideia seria mostrar uma nação que está à espera de um rompimento? E essa espera é angustiante, sufocante?
Veja só: o título original deste romance, a primeira coisa que escrevi na página em branco antes de tocar o barco, era O Silêncio da Mulher. Num momento do livro, meses depois, surgiu a imagem química da tensão superficial da água, que é, além de ciência, uma metáfora belíssima. E me deu o estalo: o título deste livro será A Tensão Superficial do Tempo, a partir da ideia concreta de alguém que não consegue ir adiante. Foi Cândido, neuroticamente fixado na ideia de rever a mulher que não quer mais vê-lo, que me inspirou: há uma película do tempo que ele não consegue romper, não consegue ir adiante. Bem, e por esses paralelos involuntários da literatura, esta imagem, de fato, é um retrato do País, incapaz de romper a película do tempo. O que, por acaso, tem tudo a ver com o livro.

A tensão política aparece como pano de fundo, mas é impossível não notar a presença de Trump e mesmo de Bolsonaro, citados na trama. Como é possível fazer ficção (especialmente a realista) sem se parecer com catarse e ainda manter um narrador aparentemente equilibrado?
Eu tenho uma regra que, como toda boa teoria, se consolida a posteriori: a literatura, como a vingança, deve ser produzida a frio. Isso me surgiu depois de escrever O Filho Eterno – se eu me metesse a escrever aquele livro logo que meu filho nasceu, teria sido um desastre. Esperei 20 anos. No entanto, o pano de fundo dos meus últimos romances (A Tradutora, A Tirania do Amor) começou a se aproximar mais do tempo presente – no caso de A Tensão Superficial do Tempo, praticamente fui escrevendo uma história que se desenrola ao mesmo tempo em que a vida real acontecia em torno.

E o risco?
Claro que existe, mas de fato não me preocupa, porque o ambiente político contemporâneo é apenas um pano de fundo, o seu cenário, e não o tema do livro. O que me interessa em tudo que escrevo são as pessoas e as relações entre elas. Sinto que sou um escritor suficientemente maduro para não cair no evangelismo literário (a ficção como porta-voz direta das verdades do autor, o que me parece uma tendência contemporânea), na esparrela panfletária ou na catarse autoindulgente, o que seria mortal.

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E lembremos que lidar com o instante presente não é nenhuma novidade – é um traço marcante que está no próprio DNA do romance como gênero literário, que sempre respirou a incerteza do tempo próximo, contemporâneo, de tudo que é inacabado, os momentos de passagem.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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