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RICARDO DÜREN

São João

Em anos anteriores, este era um período de grande agitação lá em casa. Com a aproximação do Dia de São João, as gurias colocavam abaixo as roupas dos armários à caça de seus vestidos rendados, reservados unicamente para essa data, e se punham a revirar caixas organizadoras em busca dos chapéus de palha. Tudo em meio a ensaios para as apresentações que tradicionalmente ocorriam nas escolas. Trata-se de um ritual que, pelo segundo ano seguido, está suspenso por força da pandemia.

Para as gurias, as atrações na escola eram sempre o ponto alto das comemorações de São João. Havia as canções rigorosamente ensaiadas por cada turma, o corre-corre no pátio do colégio, a pescaria, a pipoca e a perigosa cadeia – uma jaula feita com bambus. Essa última, contudo, não contava com a predileção da caçula, Ágatha.
– É preciso muito cuidado com os xerifes – revelou-me, certa vez. – Se te colocam na cadeia, é preciso pagar fiança
para sair.
E, com isso, convinha ao papai levar para a festa alguns trocados a mais, para o caso de alguma encrenca com os xerifes. Mas Ágatha, muito esperta, nunca se deixou apanhar.

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Uma coisa que sempre me intrigou na Festa de São João é seu aspecto paradoxal. Não me parece que toda essa agitação, com forró, quadrilha, comilança e alguns corajosos pulando a fogueira, seria do agrado do santo homenageado na data. A impressão que tenho de São João Batista é a de um sujeito um tanto quanto rigoroso e sisudo, do tipo que não media as palavras: chamava os fariseus de “raça de víboras” e nem a volúpia do rei Herodes Antipas escapava de suas admoestações – o que acabou custando a cabeça de João.

Confesso que eu mesmo, se vivesse naquela época, teria certo receio de me aproximar do Rio Jordão, onde João Batista fazia suas pregações. Poderia sobrar para mim:
– Ai dos zombeteiros, dos que gostam de uma cervejinha e escrevem colunas de seriedade duvidosa…

Mas tenho que admitir que a mensagem de São João, ainda que em palavras duras, é de uma riqueza imensurável. Ele
dizia que deveríamos ser como a árvore que dá bons frutos, grosso modo, que deveríamos fazer o certo, prezar pela honestidade, ajudar a quem precisa. Tivesse a humanidade dado mais atenção ao discurso implacável de João, o mundo certamente seria bem melhor, mais igualitário, pacífico e menos poluído.

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Consta que São João vivia no deserto à base de gafanhotos e mel silvestre. Rapadura, paçoca, pipoca e quentão não faziam parte de sua dieta. Contudo, por força de uma série de adaptações às culturas locais, ao longo de 2 mil anos a Festa de São João acabou se tornando uma das mais animadas da tradição cristã e, aqui no Brasil, é um quinhão riquíssimo do nosso folclore.

Aqui na região, por exemplo, uma das tradições de São João mais famosas é a dos passadores de Linha Carijinho, um
lugarejo pacato encravado no interior de Sobradinho. Tratam-se de camaradas que caminham de pés descalços sobre as brasas, durante a festa. Os céticos buscam toda sorte de explicações para o fenômeno, dizem que os passadores cruzam muito rápido sobre o fogo, que têm os pés enrijecidos pelo trabalho duro na lavoura, que o frio da noite ameniza o calor das brasas. Mas a explicação popular me agrada mais: o fenômeno é um milagre de fé.

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A tradição dos passadores foi interrompida após 90 anos, em 2020, por conta da pandemia. Na ocasião, acreditou-se que voltaria este ano, o que também não foi possível. Quem sabe, com o avanço da vacinação, possa retornar no ano que vem, juntamente com as festas de São João nas escolas e com uma série de outros eventos e tradições ainda suspensos. A exemplo dos passadores, é preciso ter fé – mas também manter os cuidados com o vírus, como todos já estamos carecas de saber. Tomar esse cuidados é também fazer nascerem bons frutos.

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