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Ricardo Düren

Uma quebra de rotina

A rotina fez com que eu e minha caçula, Ágatha, implantássemos, ainda que sem tê-lo combinado explicitamente, certa dinâmica que tornou-se bastante salutar – pelo menos, para mim. Sempre ao final das manhãs, ao cabo das aulas, estaciono o carro defronte à escola onde ela estuda e, nos minutos que restam entre minha chegada e a saída dos alunos, aproveito para colocar minhas leituras em dia. Leio dentro do carro mesmo, com o livro escorado no volante, e só paro quando percebo Ágatha abrindo a porta para embarcar.

Às vezes, ainda me demoro alguns segundos a mais para chegar ao final de um parágrafo. E a traquinas, impaciente, dá o alerta:

– Não sei se deu para notar, mas já estou no carro…
– Coloca o cinto – peço, ainda às voltas com uma última linha.

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E ela:

– Não sei se deu para notar, mas já coloquei faz tempo…

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No corre-corre do dia a dia, esses tornaram-se minutos preciosos para um aficionado por leitura.

Até algum tempo atrás, não era assim. Antes, eu mantinha o hábito de esperar a batida da sineta dentro do pátio da escola, para apanhar a caçula na porta da sala de aula e escoltá-la até o carro, garantindo que nenhum incidente lhe ocorresse nesse curto trajeto.

Porém, com o tempo fui percebendo que esse excesso de paternalismo tornou-se um tanto constrangedor para a própria Ágatha, que observava os coleguinhas saírem em disparada, sozinhos, independentes, em direção às vans ou aos automóveis dos pais. Comecei a esperá-la no portão e, gradativamente, dia após dia, fui recuando minha zona de espera em direção ao carro – até não mais desembarcar dele. E então, percebi que poderia aproveitar aquele tempo precioso para ler.

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Ágatha, feliz em ter conquistado a autonomia de andar com as próprias pernas até a saída da escola, logo acostumou-se à nova rotina. Esse hábito, que surgiu sem que tivéssemos combinado nada entre nós, tornou-se sagrado. Por isso, na única vez em que o quebrei, Ágatha tratou-me como a um herege. Aconteceu dias atrás, quando ela avançou até o carro e, na hora do embarque, percebeu que estava vazio – eu não estava lá.

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Foi em uma manhã de bastante calor. O carro havia se transformado em uma sauna, gotas de suor escorriam-me pelo rosto, não havia como me concentrar na leitura. Então decidi que poderia esperar sob a sombra de uma frondosa árvore, acomodado em um banco, no pátio da escola. Rumei até lá levando comigo o livro que estava lendo, O terror, de Dan Simmons.

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A obra inspira-se na trágica expedição dos navios britânicos H.M.S. Erebus e H.M.S. Terror, que em 1845 rumaram para o Polo Sul em busca da cobiçada Passagem Noroeste – um possível atalho entre o Atlântico e o Pacífico através da paisagem gelada do Ártico. Mas os barcos acabaram presos no mar congelado e nenhum dos quase 130 tripulantes voltou para casa. Essa história é real e, por si só, daria um excelente romance de não ficção. Contudo, Simmons achou pouco e acrescentou ao relato um assustador protagonista ficcional – um monstro, espécie de urso polar gigante, com garras e presas imensas, que passa a atacar os marinheiros sistematicamente.

Meu plano era fechar o livro e retornar para o carro assim que a campainha da escola soasse. Mas algo assustador acontecia na história naquele momento: a criatura havia invadido o convés do H.M.S. Terror e perseguia o mestre do gelo Thomas Blanky, um marujo tarimbado em expedições às regiões polares. E, enquanto Blanky tentava desesperadamente escapar à fera, escalando o mastro principal, balançando-se no cordame e equilibrando-se nas vergas, a sineta da escola tocou.

Concentrado no drama de Thomas Blanky, não escutei a sineta. Tampouco percebi quando a massa de alunos – com Ágatha no meio – avançou a trote rumo ao portão, bem debaixo do meu nariz. Impiedosa, a fera escalava o mastro, no rastro do mestre do gelo, quando alguém me cutucou furiosamente no braço. Era Ágatha.

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– Vamos para casa, ou vai ficar o dia todo aí, lendo?

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Após o susto de ter encontrado o carro vazio, a traquinas ficou furiosa ao perceber, olhando através da cerca, que eu estava sob a sombra da árvore, livro no colo, alheio ao que acontecia ao redor. E ainda mais brava depois que chamou, e eu não escutei. Veio ralhando comigo todo o caminho de volta para casa.

Ainda pensei em solicitar-lhe uma gentileza: que não mencionasse o incidente à Patrícia, minha esposa. Mas desisti. Ágatha contaria de qualquer jeito e, para piorar, ainda acrescentaria que pedi segredo. No fim das contas, tive que enfrentar outra fera em casa – e sem ter nenhum mastro ou cordame por onde escapar.

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