Fora de Pauta

Aquela velha opinião formada sobre tudo

Lançada em 1973, no álbum de estreia de Raul Seixas, Krig-Ha, Bandolo!, a música Metamorfose Ambulante traz o trecho: “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante / Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.” Mais de cinquenta anos após sua composição, ela permanece atual – e, de certo modo, incômoda –, já que, hoje, grande parte das pessoas parece ter uma opinião formada sobre tudo e faz questão de expressá-la sempre que possível, especialmente no ambiente virtual, onde todos podem ver.

À primeira vista, não há problema em as pessoas terem opiniões e se posicionarem sobre temas diversos da sociedade e do cotidiano. Pelo contrário: é fundamental estarmos informados e sermos capazes de, ao menos, compreender aquilo que nos cerca e nos afeta de alguma maneira. As dificuldades começam quando essas opiniões não são construídas a partir da reflexão e do senso crítico individual, mas sim da aceitação irrestrita de discursos alheios.

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Novamente, não há problema em compartilhar posicionamentos com outras pessoas ou grupos. O verdadeiro risco está em fazer isso sem compreender ou analisar criticamente o conteúdo que consumimos – seja no convívio social, nos veículos de comunicação ou nas redes sociais. Quando deixamos de filtrar o que lemos, ouvimos ou assistimos, e deixamos de buscar entendimento, passamos a correr o risco de reproduzir notícias falsas ou emitir opiniões infundadas sobre assuntos que desconhecemos.

Dizer que não se tem uma opinião formada sobre determinado assunto – seja por ser algo novo, complexo ou mesmo por desinteresse – não deveria ser motivo de vergonha. Afinal, não somos obrigados a compreender o mundo em sua totalidade. E, mesmo que quiséssemos, não há obrigação de tomar partido em tudo, o tempo todo.

O que se observa nas redes sociais, porém, é o oposto disso. Atualmente, além de médicos e loucos, os brasileiros parecem também ter um pouco de geopolíticos, economistas, juristas e diplomatas – entre muitas outras especialidades que, à primeira vista, parecem resultado de anos de estudo, dada a veemência com que certos discursos são proferidos por aí.

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René Descartes, pai do racionalismo moderno, fundamentou seu sistema filosófico na razão e na dúvida como principais fontes do conhecimento. Seu método, proposto no século 17, consiste em alcançar a verdade por meio da dúvida sistemática e da busca por ideias claras e distintas. Hoje, contudo, vivemos sob o predomínio da chamada pós-verdade – conceito que descreve contextos em que fatos objetivos têm menos relevância na formação das opiniões do que crenças pessoais e apelos emocionais.

Talvez, mais do que ter uma opinião formada sobre tudo, o desafio contemporâneo seja justamente reaprender a duvidar, escutar e refletir – e, como propôs Raul Seixas, permitir-se ser uma metamorfose ambulante, aberta à mudança e ao aprendizado constante.

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Iuri Fardin

Iuri Fardin é jornalista da editoria Geral da Gazeta do Sul e participa três vezes por semana do programa Deixa que eu chuto, da Rádio Gazeta FM 107,9. Pontualmente, também colabora nas publicações da Editora Gazeta.

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