Tem dias em que eu queimo. Não como faísca solta, mas como labareda que avança paciente, abraçando o que encontra, do graveto à árvore centenária. É a combustão do cansaço mental, aquele que acende por dentro e não pergunta se pode. E a gente arde manso, porque adulto tem disso: continua andando mesmo com o próprio incêndio a tiracolo.
Há um ano eu aprendi a liturgia dos banhos de pia. Não existia santo específico na torneira, mas, àquela hora, qualquer água era sagrada: do pescoço pra cima, mãos em concha, respira, ergue a cabeça. Amém do ofício. Um truque da fé possível: acreditar no próximo dia, no próximo parágrafo, no próximo café. Na falta de fé, pia. E água não me faltou pra lavar as horas extras do corpo.
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Eu queria dizer que já aprendi a fechar as torneiras do dia antes que a água transborde, mas seria falta de apuração. O que aprendi foi a respeitar os sinais. O corpo tem avisos discretos: um bocejo que não cabe num café, uma distração que deixa o mouse parado sobre a mesma palavra, uma vontade súbita de atravessar a rua só pra pisar no pedaço de sombra. Quando respeito, ganho minutos que não aparecem no relógio. Quando ignoro, o incêndio cresce. Talvez pertencer a si tenha disso: uma coleção de gatilhos sensoriais que acalmam a labareda e lembram que o corpo é endereço. O mapa que importa não tem semáforo, legenda ou zoom. Tem vapor de café, rádio antigo, folha que filtra luz, banca de revista, corredor de prédio, sabão no balde. Há também a água da pia, santa por necessidade. E existe uma cidade inteira escondida numa respiração profunda, daquelas que fazem as horas extras do corpo receberem, enfim, um intervalo.
Eu poderia encerrar com uma grande solução, mas hoje basta um pedido simples: que a gente não terceirize o cuidado. Se der, que a gente aprenda a apagar incêndios pequenos antes que virem espetáculo. E, se falhar, que nunca nos falte água.
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