Nunca me contaram muito bem qual foi a reação do meu avô quando minha mãe apareceu grávida aos 19 anos. Sei que houve um casamento depois disso, organizado às pressas. Sei também que meu avô e meu pai nunca se entenderam muito bem. Penso que o que aconteceu depois de um tempo foi aquela coisa bem clichê: nasce uma criança e o avô – até então resistente – passa a gostar do novo ser humano que, mesmo que indesejadamente, passa a fazer parte da família.
Paciente com crianças, e eu, com o sonho de ser professora na época – influenciada por minha mãe e por minha avó –, gostava de “dar aulas” para ele. Um pequeno quadro e alguns pares de giz faziam parte do aparato. Não lembro bem o que eu desenhava no quadro, afinal, naquela época, eu provavelmente nem sabia ler e escrever. Mas essa é, de fato, uma das memórias mais afetivas da minha infância. Quando chovia, como a garagem tinha abertura nas laterais, a aula se dava dentro do Monza dele. Já aposentado, o vô Renê tinha muito tempo.
Algumas vezes, no entanto, questionei a bondade dele. O alcoolismo roubou do meu avô parte do seu lado bom, na minha visão enquanto criança, apesar de nunca ter me feito mal algum. Roubou-lhe também a alegria. Com o tempo, mesmo já depois de anos sóbrio, se isolou em uma casinha erguida por ele mesmo e por um amigo, nos fundos do terreno onde constituiu família com minha avó. Na época, ninguém sabia, mas era uma depressão profunda.
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A última fotografia que eu tenho com ele foi tirada no dia da minha festa de formatura em Jornalismo. Fico feliz em saber que ele viu a primeira neta se formar. Logo depois, o Alzheimer veio avassalador. A fotografia dele na minha formatura também é a última que eu tenho em que ele aparece em pé.
O Alzheimer roubou-lhe a memória, alguns afetos, lembranças velhas e novas, e a lucidez. Vez ou outra, devaneava e dizia ser o prefeito ou outra autoridade da cidade e falava coisas engraçadas. Xingava quem não concordava ou quem não dava o cigarro que ele tanto pedia. Era engraçado, a seu modo. Meu avô nunca esqueceu como se acende um cigarro, nunca se afogou com a primeira tragada, mesmo que para ele cada cigarro fosse o primeiro do dia, ou da vida. Há um vídeo dele, que guardo com carinho, jogando bola com meu irmão, mesmo sobre a cadeira de rodas. Isso ele também não esqueceu.
Como um sopro, em uma noite de setembro de 2019, a morte levou o vô Renê. Ficaram as lembranças boas, mas é difícil esquecer também as ruins. Mesmo assim, as positivas são mais persistentes na memória e ainda tenho flashes das tardes na garagem em que eu dava aula para ele. No fim das contas, não sei quem ensinou quem.
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