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Dor e paixão

Irene fixa seu olhar em Eva: “Preciso desabafar. Sempre gostei de ti. Largaste tudo para te dedicares à cura do teu marido, o Antônio. Eva, como tua aluna, gostava demais das horas que passávamos juntas, tecendo fios, fazendo bonecas e pintando. Admirava tua mão firme e ligeira, cheia de arte. Mas por que permitiste que teu esposo, que sofria com as terríveis dores de cabeça, passasse pelos choques elétricos?”

Eva não responde. Irene prossegue: “Esse assunto deve te machucar… Mas, já que comecei, vou adiante. Quando via teu marido estendido naquela mesa, todo amarrado, com uma borracha entre os dentes, eu pensava que ia enlouquecer. Mas ficava nisso. Tinha medo de que se me atirasse para tirá-lo dali, também eu seria submetida aos choques elétricos. Quantas vezes vi você, escondidinha, apenas observando. Sei que sofrias por ele. Mas nada fizeste. Por quê?”

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Pela mente de Eva o passado retorna em perigosa curva, destas em que o acidente se aproxima mais do que se imagina. Eva, suspende as lágrimas que lhe umedecem a face e se encoraja: “Me diz uma coisa. Tu te apaixonaste pelo meu Antônio?” Irene, tomada pela surpresa da pergunta, se cala, para logo confessar: “Sim. Não sei se foi a dor ao vê-lo sofrendo, mas, sim, nos aproximamos bastante. Gostávamos de caminhar juntinhos pelas trilhas do sanatório. Ele me contava de suas dores horríveis, a ponto de se atirar contra as paredes”.

Um breve silêncio aprofunda a distância entre as duas senhoras, ainda que estivessem uma ao lado da outra. Irene retoma a conversa: “Se me apaixonei pelo Antônio, também acho que você e Cristian se tornaram bem mais do que apenas amigos… Estou certa?” Eva percebe a crueza sincera do momento: “A gente se apaixonou também, é verdade.” Irene prossegue: “Certa ocasião vi você e ele estendidos sobre a pedra, que ele chamava de encantada. Não sei como terminou aquilo. Me afastei e fui procurar Antônio. Ia contar tudo a ele. Mas, na hora, calei. Seria machucá-lo ainda mais.”

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Nisso Cristian se aproxima das duas mulheres. “Posso me juntar a vocês?”, pergunta. A resposta não vem. Mesmo assim, ele insiste: “Imagino que estejam falando do passado, de alguma mágoa, de uma ferida não curada.” Irene interrompe a fala do médico: “Vou te perguntar: por que vocês aplicavam aqueles choques horríveis nas pessoas que já sofriam tanto? Depois dos choques, pareciam mortos vivos, alheios a tudo, perdidos de si mesmos”,.

O ar pesa como chumbo. Eva lança um olhar de afago a Cristian, o que o encoraja: “Era o que se tinha e sabia. A gente achava que seria uma forma de ajudar na cura das pessoas acometidas por dores terríveis, a ponto de surtarem”. O semblante de Cristian, turvado pelo passado não bem resolvido, acentua a lembrança do sofrimento de seus pacientes, familiares e amigos.

Líris se aproxima com sua bonequinha: “O que houve mamãe, estás triste?” “Filhinha amada, chegaste no momento certo. Me abraça.” Pairou no ar a nítida sensação de que muito mais havia a ser dito. Todavia, a incompletude do momento não impede a reconciliação, ainda que parcial.

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Assim se faz. Luna se aconchega carinhosa. Também as cobras retornam aos bolsos de Cristian. As abelhas sobrevoam o momento de pacificação. O cervo, num trocar de orelhas, acena para o cardeal. Num passe de mágica coletiva, os troncos e as demais criaturas se curvam em homenagem à leveza restaurada. Por sua vez, o pombo arrulha impaciência.

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Cristian aproveita para contar a história de um pássaro amigo de um dos gestores do sanatório: “Todos os dias, pelas manhãs, aquele senhor conversava com o pombo. Até que, numa manhã, o pombo se despediu do amigo. Primeiro voou no entorno. Depois, foi subindo, subindo… Sabem para que lado? Para o noroeste, assim como nós seguimos nosso caminho.” A criança pisca para o pombo, seu amigo de trajetória.

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Minimizadas ou postergadas as mágoas, a intranquilidade do pombo a todos mobiliza para as entranhas da cratera em frente, até porque ao chamado sonoro da terra não se resiste. De onde vem este som que tanto atrai?

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Bruno da Silveira Bica

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Bruno da Silveira Bica

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