Dulci Boettcher refaz percurso de si mesma em novo livro
Além do lançamento de seu primeiro livro em Genebra, Dulci tem um segundo pronto
Para os gregos, poiesis significa “minha obra”, “o que fiz”, “o que produzi”. Nos estudos contemporâneos sobre cognição, sobre como o ser humano adquire conhecimento e o transforma em sabedoria, autopoiesis é um conceito para definir como uma pessoa tornou-se o que é.
E é nessa concepção contemporânea que a professora santa-cruzense Dulci Marlise Pagel Boettcher se apoia, ou se inspira, para compor obra na qual compartilha uma formidável bagagem cultural e de formação. Pelos caminhos da autopoiesis: inventei-me a mim mesma acaba de sair pela editora suíço-brasileira Helvetia Editions, em 223 páginas, e é uma dica de leitura imprescindível em pleno 8 de março, o Dia Internacional da Mulher. Em Santa Cruz do Sul, exemplares podem ser adquiridos na Livraria e Cafeteria Iluminura, a R$ 65,00.
Pelos caminhos da autopoiesis: inventei-me a mim mesma, de Dulci Marlise Pagel Boettcher. Cabo Frio: Helvetia, 223 p. R$ 65,00.
Mais do que iniciar a divulgação desse livro, Dulci comemora a projeção e a visibilidade internacional que ele já lhe proporciona. Na próxima terça-feira, ela embarca para Genebra, na Suíça, onde, além de participar de lançamento no tradicional Salão do Livro daquela cidade, ainda receberá uma honraria. Ocorre que pela qualidade de sua obra, em termos de abordagem e de atualidade, ela receberá o Prêmio Talentos Helvéticos Brasileiros, na próxima sexta-feira.
Como sua editora enfatiza, trata-se de uma honraria cujo fim é reconhecer autores que se destacam no cenário literário e cultural dos países onde atuam. A cada ano, os organizadores recebem indicações de agentes culturais, editores, bibliotecários e livreiros, sendo que o nome de Dulci foi selecionado para a edição de 2025. Entre outros artistas brasileiros, já representaram o Brasil nesse evento Ana Maria Machado, Carla Madeira, José Rodrigues dos Santos e Paulo Coelho, autor, por sinal, radicado em Genebra. Dulci ficará na Suíça (na qual também reside um de seus filhos, Diogo, CEO de uma multinacional em Lausanne) até o final de março.
Em Pelos caminhos da autopoiesis, ela rememora a sua própria caminhada de formação, bem como esmiuça a sua bagagem teórica, evidenciando ampla e especializada base de referências e de inspirações (e valorizando o conceito de “rede”). Entre eles, destaque para sua orientadora de pós-graduação, Nize Pellanda, que assina prefácio, e para os teóricos chilenos Francisco Varela (1946-2001) e Humberto Maturana (1928-2021) – com este, realizou inclusive uma imersão, em Santiago do Chile.
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Em Santa Cruz e na região, o livro tende a ter sabor especial para os inúmeros colegas de academia e para as centenas de estudantes que Dulci atendeu ao longo de seus 23 anos de vínculo com o Departamento de Letras da Unisc. Ali mesmo graduou-se, nessa área, e fez o mestrado em Desenvolvimento Regional. Em 2000 voltara-se a questões da complexidade e da Biologia do Conhecer, no Grupo de Ações e Investigações Autopoiéticas. Desvinculou-se da instituição em 2016, e desde então ocupa-se de compor obra na qual revisa seus temas de interesse.
Natural da Linha Sete de Setembro, no interior de Santa Cruz (também conhecida como “Fingerhut”), aos 74 anos, é filha de Edgar e Lucilla Pagel, sendo casada com Orlando Boettcher. O casal tem dois filhos, Diogo e Fernando (este residente em Santa Cruz), e os netos Arthur, Bianca e Vitor. Além de refletir sobre passagens marcantes e fundamentais de sua trajetória pessoal, Dulci ainda enfatiza a importância da leitura para que se tornasse naquilo que hoje é.
Atualmente, dispomos de abundantes informações sobre alternativas efetivas para estabelecer novos padrões que promovam uma vida mais sustentável. Essas alternativas envolvem comportamentos sociais apropriados e atitudes conscientes, destacando a importância de uma escuta poética da natureza para reintegrar o homem no Universo, no qual ele observa e pelo qual é observado. A dicotomia entre interpretação reducionista e explicação holística deve ser superada, e a ciência contemporânea não pode mais se identificar com um mundo desencantado. Como expresso na citação de Shakespeare em Júlio César, Ato I, Cena II: “Há momentos em que os homens são senhores de seu destino. O erro, meu caro Brutus, não está em nossas estrelas, mas em nós mesmos”.
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Segundo Capra e Luisi, precisamos nos tornar ecologicamente alfabetizados, e entender o funcionamento dos ecossistemas na sustentação da natureza e a teia da vida.(…). A manutenção da vida em nosso planeta necessita a observação de uma ética que envolve questões morais e práticas, referente à preservação e ao desenvolvimento da vida em todas as suas formas e exige a responsabilidade humana na preservação da biodiversidade, na redução da poluição e na atenção às mudanças climáticas.
A arte de inventar-se
O livro em que Dulci Boettcher rememora sua caminhada pessoal e profissional em torno das questões da complexidade e da chamada Biologia do Conhecer (ou Biologia do Amor), de Maturana e Varela, será lançado no próximo final de semana no Salão do Livro de Genebra, na Suíça, para onde ela vai na terça-feira. Mas antes mesmo de viajar, uma segunda obra de sua autoria chegou da gráfica. É o romance de viés autobiográfico Liesel, Fingerhut e o impacto ambiental: uma teia de complexas interações, que sai sob o selo da Pontes, em 195 páginas (o nome da editora, aliás, oferece uma simbologia extra para o volume).
Um termo do título proporciona chave de interpretação: Fingerhut (dedal, em alemão) é o nome original da localidade de Linha Sete de Setembro, no interior de Santa Cruz do Sul, a meio caminho de quem vai a Sinimbu e às margens do Rio Pardinho. Foi lá que Dulci nasceu e cresceu, e as lembranças da infância, bem como das interações comunitárias, compõem a base de sua história, entre a memória e a abordagem ficcional.
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A personagem Liesel, protagonista do romance, é uma espécie de alter-ego da autora. Na primeira parte da obra, tem-se justamente as peripécias da pequena Liesel em Fingerhut, até a saída da localidade natal para prosseguir nos estudos e, na vida adulta, constituir sua própria família.
Entretanto, uma tragédia recente inspirou uma segunda e impactante parte: Liesel relembra de sua fascinação, na infância, associada a uma ponte sobre o rio. Ocorre que as enchentes de abril e maio de 2024 levaram aquela ponte embora para sempre. Esse fato a marcou profundamente.
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“Foi a partir dessa dor pessoal que surgiram a vontade e a necessidade de escrever sobre o tema. Acredito que precisamos lembrar e registrar esse acontecimento para que algo semelhante não se repita”, frisa. “Este novo livro é, acima de tudo, um chamado e uma convocação para que atuemos com mais responsabilidade em relação ao planeta que habitamos, nosso único lar.”
Gazeta – A senhora cumpriu jornada como professora, em especial no superior, nas áreas de Letras e Literatura. O que motivou a guinada para a escrita? Essa transição para a escrita ocorreu por várias razões. A aposentadoria abriu espaço para novas formas de expressão, permitindo-me explorar um tempo antes escasso. O próprio envelhecimento trouxe uma perspectiva mais reflexiva, e senti como essencial encontrar um novo sentido para minha vida na terceira idade. Gosto de brincar dizendo que comecei a escrever porque nunca tive jeito com fios, lãs, linhas e agulhas — coisas que, nas mãos das tecelãs, viram belas criações, mas que, nas minhas, só rendem trapalhadas. No fim, a metáfora da tessitura fez todo sentido: em vez de entrelaçar fios, passei a tramar palavras, que viram pensamentos e, depois, textos. Ainda, porque escrever é uma experiência única e pessoal, uma mistura de prazer, liberdade emocional e até uma boa dose de terapia. Assim como a natureza floresce na primavera, eu, já no outono da vida, permiti que minha própria floração acontecesse naturalmente. Deixei de lado a resistência e a insegurança e me tornei autora da minha história, registrando meu processo de subjetivação a partir das experiências que vivi. Mas, ao mesmo tempo, a ideia de compartilhar essa jornada de uma forma mais acadêmica e como pesquisadora também me desafiou, e achei que valia a pena tentar.
A senhora menciona já no título a expressão “autopoiesis”. Como ela pode ser definida e de que forma se relaciona com a vida de cada pessoa? A palavra “autopoiesis” tem origem no grego, onde “auto” significa “próprio” e “poiesis” significa “criação” ou “produção”. O termo refere-se à capacidade de um sistema de se autoproduzir, mantendo sua estrutura e organização ao longo do tempo. Desenvolvido na década de 1970 pelos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, o conceito descreve o processo de autoprodução nos organismos vivos. Essa noção é essencial para entender a vida, pois descreve a capacidade dos sistemas vivos de se auto-organizarem, manterem sua identidade e se reproduzirem de forma autônoma; ou seja, os seres vivos têm a capacidade de se organizar e se manter funcionando por conta própria, mesmo diante de mudanças no ambiente. Nas células, isso se manifesta na autorreplicação, preservando sua estrutura e função. Nos seres humanos, a autopoiesis aparece em nossa habilidade de adaptar o corpo e a mente às mudanças e desafios da vida, mantendo nossa identidade e evolução. Isso nos mostra que somos responsáveis por nossas escolhas e pela maneira como nos organizamos para enfrentar o que nos acontece, permitindo-nos transformar e evoluir. Esse conceito impacta desde os processos biológicos até o conhecimento, a linguagem e as emoções, inspirando ações transformadoras e exigindo uma visão mais ampla do que o modelo cartesiano tradicional.
O subtítulo de sua obra é “inventei-me a mim mesma”. O que isso envolve, em termos filosóficos e existenciais? É sempre a pessoa que se inventa a si própria? O subtítulo “inventei-me a mim mesma” reflete a ideia de que a identidade não é algo fixo, mas um processo contínuo de autoconstrução. Em termos filosóficos, remete à noção de que a pessoa não nasce com uma identidade pré-determinada, mas a constrói ao longo da vida por meio de escolhas, experiências e reflexões. A autopoiesis, por exemplo, sugere que somos sistemas vivos que se auto-organizam, o que implica uma constante reinvenção de nós mesmos. Existencialmente, a frase também remete à liberdade de dar significado à própria vida; portanto, somos responsáveis por nossos próprios atos em vez de sermos definidos por normas externas. No entanto, embora a pessoa tenha grande poder de “se inventar”, esse processo não ocorre de forma isolada. O contexto social, cultural e histórico em que estamos inseridos, assim como as relações com os outros, influenciam essa invenção. Assim, “inventar-se” não significa uma criação completamente autônoma, mas um jogo constante entre escolha individual e os condicionamentos do mundo ao redor.
Nesse processo, como ocorre a relação da pessoa com o seu entorno? Em todas as circunstâncias, a pessoa sempre tem domínio ou é responsável por tudo aquilo que com ela ocorre ou pela forma como conduzirá a sua vida? A relação da pessoa com seu entorno é uma dinâmica interdependente, em que o indivíduo não é um ser isolado, mas se constrói e se reinventa por meio das influências sociais, culturais e históricas. Embora cada pessoa tenha autonomia para fazer escolhas e moldar sua vida, isso não significa que ela tenha total controle sobre tudo o que ocorre. Circunstâncias externas, como o contexto social ou eventos imprevistos, também desempenham um papel crucial. Assim, a pessoa é responsável por suas escolhas, mas sua liberdade de ação é, de certa forma, limitada pelas condições e oportunidades que o mundo oferece. A verdadeira autoinvenção surge da capacidade de interagir com o ambiente de forma reflexiva, reconhecendo as influências externas enquanto toma decisões que a definem.
Quem são as suas principais influências em termos de leituras, e que a senhora deixaria como dica para cada pessoa? Meu livro Pelos caminhos da autopoiesis, inventei-me a mim mesma dialoga com diversos autores que influenciaram minha reflexão sobre subjetividade, complexidade e a construção da realidade. Destaco Humberto Maturana e Francisco Varela, criadores do conceito de autopoiesis, que aborda a construção do conhecimento e da subjetividade a partir de um paradigma complexo e relacional. Também incluo Friedrich Nietzsche, que introduziu o conceito de potência e a visão do ser como um processo de devir, desafiando-nos a questionar preconceitos e a reinventar continuamente nossa existência. Baruch Spinoza, com sua filosofia dos afetos e o conceito de conatus, nos ensina que razão e afetos são complementares, e que a liberdade surge ao transformar nossas paixões em ação. Edgar Morin, ao abordar a complexidade e a religação dos saberes, propõe uma visão integrada do conhecimento, desafiando a fragmentação do pensamento reducionista. Pierre Lévy, por sua vez, explora o potencial emancipatório da tecnologia, introduzindo a cibercultura e destacando a tecnologia como um campo de possibilidades para democratizar o saber. Também menciono Gregory Bateson e Henri Atlan, cujas contribuições sobre complexidade, auto-organização e epistemologia aprofundam a compreensão dos processos dinâmicos da vida. Por fim, Henri Bergson, com sua ênfase na duração, oferece uma perspectiva fluida do tempo e da subjetividade, distinta da concepção mecanicista. Mas não posso deixar de mencionar a participação e influência de minha orientadora e professora durante a realização de meu Mestrado em Desenvolvimento Regional na UNISC, Dra. Nize Pellanda, que me apresentou a todos esses filósofos e desafiou-me intelectualmente, instigando uma reflexão mais profunda sobre a complexidade, a interconexão dos saberes e a radicalidade do pensamento crítico. Seu olhar atento e sua orientação foram decisivos para a construção do meu percurso acadêmico e intelectual.
A senhora menciona que sempre foi, acima de tudo, uma leitora. O que a leitura representa no processo da autoformação do ser humano? A leitura, para mim, sempre foi um processo essencial de autoformação, pois permite que o ser humano entre em contato com diferentes perspectivas, ideias e mundos, expandindo sua compreensão da vida e de si mesmo. Cada livro é uma oportunidade de explorar o desconhecido, de refletir sobre as experiências dos outros e de confrontar nossas próprias ideias e emoções. No meu caso, a leitura foi o meio pelo qual comecei a construir uma visão mais ampla e integrada da realidade, relacionando ciência, filosofia, arte e experiências de vida. A leitura é um convite à reflexão, à crítica e à reinvenção, permitindo-nos repensar nossa existência e nosso lugar no mundo. Nos momentos de dor, foi nela que me encontrei, pois oferece um espaço para projetarmos nossos pensamentos e emoções, ao mesmo tempo em que nos conecta ao coletivo e ao transcendente. Mais que conhecimento, a leitura é um processo contínuo de autodescoberta e transformação. Sócrates enfatizou a importância do conhecimento e da sabedoria, particularmente no que diz respeito ao autoconhecimento e à busca pela verdade. Uma de suas citações mais famosas sobre sabedoria é: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses”.
A senhora vai lançar esse seu primeiro livro na Suíça. Como isso ocorreu e qual a expectativa por comparecer à Feira do Livro de Genebra? Sim, submeti o texto de meu livro à Editora Helvetia, que tem sedes no Brasil e na Suíça, e fui agraciada com o Prêmio Talentos Helvéticos-Brasileiros 2025, uma honraria dedicada a reconhecer autores que se destacam no cenário cultural dos países onde atuam. Essa distinção foi um momento significativo, especialmente nesse período em que me envolvo mais intensamente com a escrita, e me proporcionou a oportunidade de compartilhar minha obra na Feira do Livro de Genebra, um evento que celebra a literatura e promove o intercâmbio cultural entre Brasil e Suíça. Minha expectativa para o evento é de imersão, aprendizado e troca de experiências com outros escritores, leitores e profissionais do setor, além de ser uma oportunidade de apresentar ao público a reflexão que busquei construir em meu livro.
A senhora cumpriu jornada como professora, em especial no superior, nas áreas de Letras e Literatura. O que motivou a guinada para a escrita? Essa transição para a escrita ocorreu por várias razões. A aposentadoria abriu espaço para novas formas de expressão, permitindo-me explorar um tempo antes escasso. O próprio envelhecimento trouxe uma perspectiva mais reflexiva, e senti como essencial encontrar um novo sentido para minha vida na terceira idade. Gosto de brincar dizendo que comecei a escrever porque nunca tive jeito com fios, lãs, linhas e agulhas — coisas que, nas mãos das tecelãs, viram belas criações, mas que, nas minhas, só rendem trapalhadas. No fim, a metáfora da tessitura fez todo sentido: em vez de entrelaçar fios, passei a tramar palavras, que viram pensamentos e, depois, textos. Ainda, porque escrever é uma experiência única e pessoal, uma mistura de prazer, liberdade emocional e até uma boa dose de terapia. Assim como a natureza floresce na primavera, eu, já no outono da vida, permiti que minha própria floração acontecesse naturalmente. Deixei de lado a resistência e a insegurança e me tornei autora da minha história, registrando meu processo de subjetivação a partir das experiências que vivi. Mas, ao mesmo tempo, a ideia de compartilhar essa jornada de uma forma mais acadêmica e como pesquisadora também me desafiou, e achei que valia a pena tentar.
A senhora menciona já no título a expressão “autopoiesis”. Como ela pode ser definida e de que forma se relaciona com a vida de cada pessoa? A palavra “autopoiesis” tem origem no grego, onde “auto” significa “próprio” e “poiesis” significa “criação” ou “produção”. O termo refere-se à capacidade de um sistema de se autoproduzir, mantendo sua estrutura e organização ao longo do tempo. Desenvolvido, na década de 1970, pelos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, o conceito descreve o processo de autoprodução nos organismos vivos. Essa noção é essencial para entender a vida, pois descreve a capacidade dos sistemas vivos de se auto-organizarem, manterem sua identidade e se reproduzirem de forma autônoma; ou seja, os seres vivos têm a capacidade de se organizar e se manter funcionando por conta própria, mesmo diante de mudanças no ambiente. Nas células, isso se manifesta na autorreplicação, preservando sua estrutura e função. Nos seres humanos, a autopoiesis aparece na nossa habilidade de adaptar o corpo e a mente às mudanças e desafios da vida, mantendo nossa identidade e evolução. Isso nos mostra que somos responsáveis pelas nossas escolhas e pela maneira como nos organizamos para enfrentar o que nos acontece, permitindo-nos transformar e evoluir. Esse conceito impacta desde os processos biológicos até o conhecimento, a linguagem e as emoções, inspirando ações transformadoras e exigindo uma visão mais ampla do que o modelo cartesiano tradicional.
O subtítulo de sua obra é “inventei-me a mim mesma”. O que isso envolve, em termos filosóficos e existenciais? É sempre a pessoa que se inventa a si própria? O subtítulo “inventei-me a mim mesma” reflete a ideia de que a identidade não é algo fixo, mas um processo contínuo de autoconstrução. Em termos filosóficos, isso remete à noção de que a pessoa não nasce com uma identidade pré-determinada, mas a constrói ao longo da vida por meio de escolhas, experiências e reflexões. A autopoiesis, por exemplo, sugere que somos sistemas vivos que se auto-organizam, o que implica uma constante reinvenção de nós mesmos. Existencialmente, a frase também remete à liberdade de dar significado à própria vida, portanto, somos responsáveis por nossos próprios atos em vez de sermos definidos por normas externas. No entanto, embora a pessoa tenha grande poder de “se inventar”, esse processo não ocorre de forma isolada. O contexto social, cultural e histórico em que estamos inseridos, assim como as relações com os outros, também influenciam essa invenção. Assim, “inventar-se” não significa uma criação completamente autônoma, mas um jogo constante entre escolha individual e os condicionamentos do mundo ao redor.
Nesse processo, como ocorre a relação da pessoa com o seu entorno? Em todas as circunstâncias, a pessoa sempre tem domínio ou é responsável por tudo aquilo que com ela ocorre ou pela forma como conduzirá a sua vida? A relação da pessoa com seu entorno é uma dinâmica interdependente, em que o indivíduo não é um ser isolado, mas se constrói e se reinventa por meio das influências sociais, culturais e históricas. Embora cada pessoa tenha autonomia para fazer escolhas e moldar sua vida, isso não significa que ela tenha total controle sobre tudo o que ocorre. Circunstâncias externas, como o contexto social ou eventos imprevistos, também desempenham um papel crucial. Assim, a pessoa é responsável por suas escolhas, mas sua liberdade de ação é, de certa forma, limitada pelas condições e oportunidades que o mundo oferece. A verdadeira autoinvenção surge da capacidade de interagir com o ambiente de forma reflexiva, reconhecendo as influências externas enquanto toma decisões que a definem.
Quem são as suas principais influências em termos de leituras, e que a senhora deixaria como dica para cada pessoa? Meu livro Pelos caminhos da autopoiesis, inventei-me a mim mesma dialoga com diversos autores que influenciaram minha reflexão sobre subjetividade, complexidade e a construção da realidade. Destaco Humberto Maturana e Francisco Varela, criadores do conceito de autopoiesis, que aborda a construção do conhecimento e da subjetividade a partir de um paradigma complexo e relacional. Também incluo Friedrich Nietzsche, que introduziu o conceito de potência e a visão do ser como um processo de devir, desafiando-nos a questionar preconceitos e a reinventar continuamente nossa existência. Baruch Spinoza, com sua filosofia dos afetos e o conceito de conatus, nos ensina que razão e afetos são complementares, e que a liberdade surge ao transformar nossas paixões em ação. Edgar Morin, ao abordar a complexidade e a religação dos saberes, propõe uma visão integrada do conhecimento, desafiando a fragmentação do pensamento reducionista. Pierre Lévy, por sua vez, explora o potencial emancipatório da tecnologia, introduzindo a cibercultura e destacando a tecnologia como um campo de possibilidades para democratizar o saber. Também menciono Gregory Bateson e Henri Atlan, cujas contribuições sobre complexidade, auto-organização e epistemologia aprofundam a compreensão dos processos dinâmicos da vida. Por fim, Henri Bergson, com sua ênfase na duração, oferece uma perspectiva fluida do tempo e da subjetividade, distinta da concepção mecanicista. Mas não posso deixar de mencionar a participação e influência de minha orientadora e professora durante a realização de meu Mestrado em Desenvolvimento Regional na UNISC, Dra. Nize Pellanda, que me apresentou a todos esses filósofos e desafiou-me intelectualmente, instigando uma reflexão mais profunda sobre a complexidade, a interconexão dos saberes e a radicalidade do pensamento crítico. Seu olhar atento e sua orientação foram decisivos para a construção do meu percurso acadêmico e intelectual.
A senhora menciona que sempre foi, acima de tudo, uma leitora. O que a leitura representa no processo da autoformação do ser humano? A leitura, para mim, sempre foi um processo essencial de autoformação, pois permite que o ser humano entre em contato com diferentes perspectivas, ideias e mundos, expandindo sua compreensão da vida e de si mesmo. Cada livro é uma oportunidade de explorar o desconhecido, de refletir sobre as experiências dos outros e de confrontar nossas próprias ideias e emoções. No meu caso, a leitura foi o meio pelo qual comecei a construir uma visão mais ampla e integrada da realidade, relacionando ciência, filosofia, arte e experiências de vida. A leitura é um convite à reflexão, à crítica e à reinvenção, permitindo-nos repensar nossa existência e nosso lugar no mundo. Nos momentos de dor, foi nela que me encontrei, pois oferece um espaço para projetarmos nossos pensamentos e emoções, ao mesmo tempo em que nos conecta ao coletivo e ao transcendente. Mais que conhecimento, a leitura é um processo contínuo de autodescoberta e transformação. Sócrates enfatizou a importância do conhecimento e da sabedoria, particularmente no que diz respeito ao autoconhecimento e à busca pela verdade. Uma de suas citações mais famosas sobre sabedoria é: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses”.
A senhora vai lançar esse seu primeiro livro na Suíça. Como isso ocorreu e qual a expectativa por comparecer à Feira do Livro de Genebra? Sim, submeti o texto de meu livro à Editora Helvetia, que tem sedes no Brasil e na Suíça, e fui agraciada com o Prêmio Talentos Helvéticos-Brasileiros 2025, uma honraria dedicada a reconhecer autores que se destacam no cenário cultural dos países onde atuam. Essa distinção foi um momento significativo, especialmente nesse período em que me envolvo mais intensamente com a escrita, e me proporcionou a oportunidade de compartilhar minha obra na Feira do Livro de Genebra, um evento que celebra a literatura e promove o intercâmbio cultural entre Brasil e Suíça. Minha expectativa para o evento é de imersão, aprendizado e troca de experiências com outros escritores, leitores e profissionais do setor, além de ser uma oportunidade de apresentar ao público a reflexão que busquei construir em meu livro.