Imagine a seguinte situação: tarde fria e chuvosa, você está recolhido em casa há dois dias, mal, com suspeita de ser o portador de um arrasador vírus da gripe – que agora tem dos mais variados tipos – e alguém com ares de “japonês da Federal” bate na tua porta.
Tu vê o cara pelo olho mágico. Mau sinal: o porteiro deixou subir, sem interfonar. Pinga o teu nariz, no carpete, e pinga o capote preto do cara, todo molhado pelo dilúvio, que não cessa nunca, no tapetinho da porta. Do outro lado da porta. Um tormento, também, te varre o cérebro: abrir ou não abrir a maldita porta que – adivinhas – te separa de um futuro incerto!
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Na face principal do papel você reconhece o seu nome. Completo e em letra de forma. Vira e não encontra o remetente. Mistério. Você abre o envelope, meio afoito, e por pouco não rasga o seu conteúdo, um papel fininho como uma seda de enrolar baseados, com os seguintes dizeres: “Tia Amelinha morreu. Ela viveu seus últimos anos em Hing Pou, na Tailândia, e como você é o seu único parente, vivo, lhe cabe uma pequena fortuna que será depositada em sua conta tão logo você ligue para o númer…”
O resto é só um borrão ilegível, uma mancha de tinta azul, molhada, graças a esta impiedosa e traiçoeira chuva. Esta chuva que parece ter sido espremida do mofo do inferno… Uma chuva que não cessa nunca – e que não vai parar tão cedo.
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Vai dizer que tu nunca fantasiou com uma herança assim, inesperada, que te pegasse de surpresa, nos últimos dias do mês, quando começa a minguar o que tu tem lá na tua conta? Uma situação de filme.
A tua tia-avó,
a Tia Amelinha,
se foi
e te deixou tudo
o que ela tinha:
uma coleção de selos
carimbados,
uma boneca sem os braços
e a conta da Quitandinha.
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