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Folhetim: A cura

E o mundo se refaz mundo. Aos olhos borbulhantes da bonequinha os lodos originários reconstituem geobiodiversos Adões e Evas. Exultante a libélula se multiplica, assim como as abelhas polinizadoras se apressam na visita a todas as flores que possam ser encontradas. “Eis a cura”, proclama Cristian. “Talvez seja isso a Terra sem Males”, emenda Eva, com o assentimento de Irene. Líris, dirigindo-se à criança, interrompe a prodigalidade do momento: “Precisamos mostrar onde tudo começou”.

Adivinhando o percurso, Luna puxa a frente. Junto aos porões do prédio mais antigo do Sanatório, estanca. “Venham comigo”, convida Líris. Adentram. Acostumam a visão ao ambiente escurecido. Líris prossegue: “Foi aqui que conduzi a mão de Eva para que fosse encontrada a lasca de arenito. Lasca que nos intrigou desde o início, mas que nos impulsionou córrego acima, furna e casa na água adentro, e no mergulho na cratera, onde descobrimos o trilobita e a libélula. Nos fizemos caminhantes, ao lado das cobras e das abelhas, dos troncos decepados e das criaturas feridas, do cervo e do cardeal, do pombo e de Luna. Nos unimos aos nativos e vulneráveis.”

Admirados com o relato memorial, Cristian, Eva, Irene e Antônio relembram de todas as demais criaturas e feições encontradas durante o percurso. Líris acrescenta: “Eva, antes da caminhada, bem no início, subimos ao sótão, onde nos esperava a bonequinha que fora feita por minha mãe, Irene, tua aluna dos tempos em que viveram no sanatório”.

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Eva, a artesã habituada a realizar as costuras entre os diferentes elementos, ensaia uma síntese: “A lasca de rocha que a Líris segura em sua mão, como já todos sabemos, configura seis lados. Porém, podemos multiplicar essas interfaces por nossas vivências nestas semanas mobilizadoras. Nos últimos dias trocamos as estacas de um loteamento por árvores onde os ninhos encontram abrigo, implantamos um cemitério em que as árvores substituem as lápides, vimos o vento acolher nossa querida Tanice, assistimos aos nativos e feridos retornarem pelo Peabiru e, a pouco, os olhinhos desta bonequinha nos revelaram a força inovadora da Terra e de uma nova humanidade convivente com todas as demais existências”.

A vontade de todos é de aplaudir o relato de Eva, todavia optam por aconchegar-se. Irene aproveita para ampliar o relato: “Impressiona como o número seis nos desafia e faz companhia: os seis lados das células dos favos das abelhas, as seis perninhas da libélula… Também é notável a força que nos moveu em sentido noroeste e depois nos fez retornar para este sanatório”.

Antônio intervêm: “O que mais me impressionou foi o bloco de arenito virar areia e depois pântano”. Cristian conclui: “Estamos vivenciando um grande aprendizado. E tudo a partir de um diálogo com a natureza. Aprendemos que a força coexistencial pode estar na fragilidade, o que não quer dizer que extinções não nos ensinem. Alguma coisa me diz que temos muito mais a compreender e desenvolver. Afinal de contas, Cinturões Verdes, entre tantos nichos, também abrigam os sanatórios que todos cultivamos”.

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A conversa segue. Em breve anoitecerá. Líris anuncia: “Chegou a hora de devolvermos a lasca de arenito a seu lugar. Depois de nós, outras pessoas podem precisar ou serem convidadas pela Natureza para uma experiência semelhante a nossa. Juntemos as mãos. Em conjunto, vamos reposicionar a lasca de arenito em seu lugar, por entre os blocos das fundações deste prédio”. E assim fazem.

Nossos aventureiros, na sequência, deixam o porão. O ímpeto por seguir caminhando os anima. Todavia, após semanas de andanças e de inexplicáveis acontecimentos à luz do senso comum, soa inaugural um novo tempo, até porque as notícias não são boas. Pelo celular, a criança e Líris acompanham o noticiário preocupante. O que estaria acontecendo com o Planeta? E com o plátano que zela pelo “irmão” sepultado? Estaria murchando?

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Ricardo Gais

Natural de Santa Cruz do Sul, Ricardo Luís Gais, 27 anos, é jornalista multimídia no time do Portal Gaz desde 2023.

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