Diferente do Brasil, o verão na Itália começa em junho e o inverno em dezembro. A chegada do calor no hemisfério norte foi razão suficiente para uma viagem espontânea com um único desejo: ver o mar. Uma das grandes vantagens de viver na Itália é o transporte. Você pode simplesmente embarcar em um trem para onde quiser e aproveitar o trajeto, sem preocupações com trânsito, estacionamento ou estradas desconhecidas. Viajar sobre trilhos tem algo de profundamente meditativo. Pelas janelas, as paisagens mudam a cada segundo – algo raro no cotidiano, sempre voltado a produzir e realizar. É um lembrete: somos passageiros nesta vida, como diz a música Encontros e despedidas, de Milton Nascimento e Fernando Brant.
Gênova nasceu destinada a um profundo relacionamento com o mar. E os romanos já sabiam disso – desde então, ela foi passagem de rotas, pessoas e mercadorias entre continentes (como produtos de luxo do Oriente: especiarias, seda, perfumes…). Um ponto de travessia e cruzamento entre culturas.
Devido à sua localização, cresceu como uma das grandes repúblicas marítimas da Idade Média, tornou-se potência comercial e financeira nos séculos seguintes e, mais tarde, palco silencioso das partidas de milhões de italianos que buscavam melhores condições de vida rumo às Américas. Até hoje, Gênova abriga um dos portos mais importantes e movimentados da Europa – e do mundo – em termos de carga e logística, mantendo vivo seu papel estratégico no cenário global. É uma cidade única, que vale a pena visitar se você estiver pela Itália.
Publicidade
LEIA TAMBÉM: La Bella Italia: redescobrindo as raízes italianas
Descemos na estação Piazza Principe e pegamos o metrô até o Quartiere Foce, já próximo ao mar. Primeira parada: comprar a famosa focaccia genovesa.
A versão tradicional é macia, feita com azeite local, sal grosso e às vezes alecrim. Pode ter variações com cebola, azeitona ou tomate – mas nunca leva molho, ao contrário da pizza. As padarias fazem fornadas várias vezes por dia, e o perfume toma conta das ruas. Um aroma que praticamente guia os passos de quem explora a cidade.
Publicidade
Nosso plano: mangiare guardando il mare – comer observando o mar. Caminhamos por Corso Italia, a beira-mar de Gênova. O chão, dourado e colorido, é decorado com rosas dos ventos – símbolo dos marinheiros e de tantos que partiram daqui em busca de novos destinos.
À direita, o azul do céu e das águas. À esquerda, palácios coloridos no estilo Liberty (a art nouveau italiana), característicos das vilas de luxo construídas no fim do século 19. Ornamentações nas janelas e portas, torres que lembram castelos, varandas balaustradas, janelas em arco e telhados largos com estrutura de madeira à mostra. Foi seguindo esse caminho que chegamos a um lugar mágico chamado Boccadasse – uma pequena praia onde o mar se encosta suavemente nas casas coloridas empilhadas sobre as pedras, com barquinhos descansando nas bordas da baía e um clima acolhedor de vila de pescadores.
LEIA TAMBÉM: Minha jornada com o italiano
Publicidade
Não por acaso, Boccadasse foi uma das inspirações para o filme Luca, da Disney. O diretor, Enrico Casarosa, nasceu e cresceu em Gênova, passando boa parte da infância nesse bairro. Em entrevistas, contou que a ambientação do longa e o vilarejo fictício Portorosso foram diretamente inspirados nesse cenário.
Assisti ao filme durante o voo para a Itália, aproveitando para praticar o idioma. É uma narrativa delicada sobre amizade verdadeira – valor que se relaciona intimamente com a cultura italiana: a valorização das relações pessoais como base para uma vida com qualidade. Italianos são sociáveis e gostam de estar em boa companhia, dividindo histórias e refeições.
Nestes meses vivendo por estas terras, aprendi muito sobre a importância de nutrir laços. Quem te quer bem se coloca sempre à disposição para ajudar nos momentos desafiadores. O seu problema se torna também da família, dos amigos. Os bons momentos são celebrados juntos – e os difíceis, compartilhados com o mesmo cuidado. Se você cativar um italiano, ele fará questão de estar presente e te querer bem. E ali, sobre as pedras (muitas praias da Ligúria não têm areia), nos sentamos para degustar nossas focaccias. Do jeito italiano: dolce far niente, sentindo a brisa no rosto e partilhando uma refeição simples, mas especial.
Publicidade
LEIA TAMBÉM: São Valentim: o berço de artistas que eternizaram o amor
Admito que, ao longo do dia, comemos cerca de dez focaccias cada um… Decidimos nos entregar completamente à culinária local.Cada vez que surgia a fome, parávamos em uma banca para comprar mais – e claro, sempre experimentando um novo sabor. Assim como ouvir música pode te transportar, provar a gastronomia de um território também te leva para dentro das suas histórias e tradições.
Recarregadas, seguimos nossa rosa dos ventos interna, guiadas pela curiosidade. Subimos pelas ruelas do bairro até alcançar um penhasco com uma vista de tirar o fôlego. Sentamos em bancos perfeitamente posicionados para contemplar a paisagem de 180 graus: o porto antigo (de onde partiram grande parte dos imigrantes que chegaram ao sul do Brasil), praias próximas e colinas que contornam a cidade. Aquelas águas carregam histórias de partidas, sonhos e promessas. De arrepiar.
Publicidade
Continuamos explorando as pequenas vias. A cada esquina, uma surpresa: palácios impressionantes, mais cores, mais flores, mais beleza. Gênova é uma cidade para se perder sem medo. Seus encantos se escondem atrás de muros altos, escadarias que parecem não levar a lugar algum – até que, de repente, revelam mais uma joia.
Diferente de cidades que se mostram logo na chegada – como Roma, majestosa a cada respiro – Gênova exige pausa, escuta e entrega ao acaso. Talvez seja por isso que tantos cantautores conhecidos, como Fabrizio De André, Gino Paoli, Luigi Tenco e tantos outros, nasceram aqui. Porque Gênova, com seus contrastes e silêncios, provoca reflexão. Uma cidade de encontro entre o velho e o novo, além de um forte espírito crítico. O cenário urbano inspira a divagação sobre as relações humanas, críticas sociais à desigualdade e injustiças dos marginalizados. E a beleza do mar e da natureza inspira poesia e o canto.
E para finalizar esta edição, deixo os versos de Fabrizio di André da música Se ti tagliassero a pezzetti, a qual acredito que possa representar o sentimento de tantos que partiram deste porto. E adesso aspetterò domani / per avere nostalgia / signora libertà, signorina fantasia, / così preziosa come il vino, così gratis come la tristezza / con la tua nuvola di dubbi e di bellezza. E agora esperarei o amanhã / para sentir saudade / senhora liberdade, senhorita fantasia / tão preciosa quanto o vinho, tão gratuita quanto a tristeza / com tua nuvem de dúvidas e de beleza.
This website uses cookies.