Cultura e Lazer

Livro: a vida e a arte de mudar o script

Os bastidores das gravações de um longa-metragem oferecem a base para Frankito em chamas, segundo romance do gaúcho Matheus Borges, lançado pela Todavia. A segurança e a leveza com que o autor conduz a narrativa o estabelecem desde logo como nome digno de ser celebrado no cenário da literatura brasileira. O livro terá lançamento no dia 7 de novembro na Feira do Livro de Porto Alegre, com atividade às 17 horas no 4o andar do Clube do Comércio e sessão de autógrafos às 18 horas na Praça da Alfândega.

A trama gira em torno da equipe envolvida nas filmagens, no vilarejo de Pedrerita, no Uruguai, mas Porto Alegre, São Paulo e outras cidades estão implicadas. A narrativa principia com Felipe, roteirista do filme, no avião em que deixará Porto Alegre, onde reside, em viagem para Montevidéu. É dele o script de Aves Migratórias, longa nacional que terá gravações em balneário uruguaio, graças a programa de parceria da área do audiovisual no Mercosul. A direção é de Guilherme Wallauer, um velho conhecido de Felipe.

Mal este chega ao hotel no qual produção e elenco estão hospedados, e depara-se com Natália, com a qual, mesmo ela sendo casada, tivera um affair. Felipe, por sua vez, ainda se ressente do fato de estar sozinho, após terminar relação de quase uma década. Agora vive de novo no apartamento do pai, na capital gaúcha.

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No ambiente das gravações, interage com um ator consagrado, Paulo Roberto Castelo, a quem muito admirava e que é a principal estrela do filme. Com ele, terá inclusive a oportunidade de contracenar, em uma mudança de última hora no script. A situação ganha contornos misteriosos quando entra em ação um dublê uruguaio, Frankito. Este crescera em ambiente de circo, e é destacado a atuar em algumas das cenas mais complicadas do personagem de Castelo. A convivência com Frankito levará Felipe a, uma vez mais, propor uma alteração na cena final do longa, em uma mudança ousada.

Passos no mundo das letras

Em Frankito em chamas, o escritor Matheus Borges, de 32 anos, amarra as suas duas grandes áreas de interesse e de formação: o cinema e a literatura. Ele nasceu em Porto Alegre, mas cresceu em Tapes, às margens da Lagoa dos Patos, a cerca de 110 quilômetros da capital gaúcha. 

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A vocação para a área artística o levou a cursar Cinema, pela Unisinos. A partir disso, atuou como roteirista e em alguns trabalhos como diretor. Dos roteiros para uma carreira de escritor foi outro passo natural, e em 2015, com pouco mais de 20 anos, ingressou na Oficina de Criação Literária conduzida pelo escritor e professor Luiz Antonio de Assis Brasil, na PUCRS. 

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Ali, além de aperfeiçoar-se na técnica da produção literária, tomou contato com a teoria e com a bagagem de conhecimentos do mestre de gerações de autores brasileiros. Pôde conviver, inclusive em sala de estudos, com vários nomes que atualmente firmam seu nome na cena literária contemporânea, gaúchos e de vários outros estados.

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Seu romance de estreia, Mil placebos, foi lançado em 2022. Ainda antes, em 2021, começou a escrever Frankito em chamas, concluído dois anos depois, no contexto do mestrado que cursou na Ufrgs. Atualmente, Matheus desenvolve o doutorado, sob a orientação do professor e também escritor Guto Leite. E, naturalmente, novas obras virão por aí.

“Somos a soma de muitas migrações”

Frankito em chamas, de Matheus Borges,  constitui-se em torno de seres (e histórias) em constante movimento. Como, aliás, sugere o próprio título do longa que está sendo gravado em um balneário uruguaio, “Aves Migrantes”. Os personagens centrais, em sua ampla maioria, estão “em trânsito”, como talvez seja típico em um set de filmagens. Mas não só no contexto profissional: também em seus relacionamentos e em suas perspectivas e expectativas de vida, lidam com histórias que acabaram ou acabam, e com fios pouco firmes de enredos paralelos.

“Migramos ao longo da vida”, sugere Borges em entrevista à Gazeta do Sul, concedida por e-mail e WhatsApp. Se a história de sua narrativa, com suas derivações para a individualidade de cada personagem, inspira alguma insegurança ou incerteza, o autor consegue transmitir leveza e bom humor, mesmo nas passagens mais tensas. É como se no curso das águas desse rio, que é a vida, os seixos fossem sendo atritados e, embora com alguma rispidez ou desconforto, gradativamente as relações fossem sendo polidas, com arestas aplainadas.

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Enquanto acompanha as filmagens, como convidado de honra da produção, a certa altura o roteirista Felipe depara-se com o convite para que faça uma ponta. Em outras palavras: que literalmente entre em cena (e uma cena marcante) do enredo que ele próprio criou. Se o script é mudado uma vez, mais adiante Felipe tem a intuição de, contrariando as pretensões de quem administra essa produção, fazer uma segunda mudança. Ele quer fazer uma pequena alteração, mas ela tem o dom de fazer, literalmente, as gravações pegarem fogo. Bem como por vezes ocorre na vida.

Entrevista

Teu romance Frankito em chamas tematiza o ambiente da gravação e da produção de um filme. Alimentas a expectativa de vê-lo transposto para as telas? Escreveste já pensando em soluções nesse sentido?

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Eu queria tratar dos pequenos conflitos que surgem quando várias pessoas, que muitas vezes nem se conhecem, encontram-se na posição de manter convivência prolongada num lugar estranho. Um set de filmagem é isso. E às vezes ocorre que as histórias acontecendo no set são muito mais interessantes do que a história contada no filme sendo feito. Desde que o livro foi lançado, recebi vários comentários no sentido de que daria um bom filme, ou de que é uma história bastante cinematográfica, mas não escrevi pensando nisso. A literatura e o roteiro audiovisual são linguagens bastante diferentes e cada uma tem suas particularidades.

Tens formação nas duas áreas, cinema e literatura. Para ti, o que mais aproxima essas duas artes, em termos de soluções (ou desafios) para quem escreve?

Na página de um roteiro, cabem apenas descrições do que pode ser visto ou ouvido. Então o roteirista precisa se adaptar a essas limitações e descrever a história da melhor forma possível com esses recursos. Na literatura ocorre o contrário: não há limitações. Tudo cabe na página. O que pode ser visto, ouvido, cheirado, tocado, pensado ou sentido. É o tabuleiro completo da experiência humana. Outra coisa é que escrevemos um roteiro de cinema com um público bastante definido: a equipe que vai fazer o filme. 

Para o espectador, não importa como se deu a escrita do roteiro. Ele vê o filme, mas não lê o trabalho do roteirista. Então sempre me pareceu mais importante escrever um roteiro pensando na equipe e no elenco do que no espectador. E a literatura, quem lê é o leitor. No entanto, para que leitor escrevemos? Essa é uma discussão que nunca tem fim e cada escritor tem sua resposta.

Uma pitada de humor marca o enredo, como contraponto a uma certa melancolia, vinda até da paisagem ou da situação em que se encontram os personagens. É uma marca que entendes como central em tua obra?

Para mim, a literatura às vezes funciona como uma extensão da vida real. Não no sentido de transpor minhas próprias experiências para a página em branco, mas de preservar no texto uma certa perspectiva minha sobre as coisas, mesmo num mecanismo tão esquematizado como é o romance. E o centro disso é a figura do narrador, que no romance é quem conduz as ideias e os eventos. Felipe, o narrador de Frankito em chamas, é talvez o meu narrador mais próximo de mim – certamente muito mais próximo do que o narrador de Mil placebos

Essa mistura, às vezes estranha, de humor e melancolia, é algo natural para mim, é algo que representa muito bem a maneira como eu encaro as coisas, tanto as dificuldades quanto as alegrias da vida. Acho que isso, de buscar os sentidos ocultos do cotidiano, seja a piada perfeita num momento de angústia ou um sinal de tristeza num momento de alegria, é algo que faz parte da minha personalidade. E que acaba por integrar, em maior ou menor grau, as histórias que eu escrevo.

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A história se desenvolve em torno das inquietações de um roteirista (na verdade, de vários na equipe). O romance foi uma maneira de trabalhar com desafios com que tu próprio lidas, uma vez que também és roteirista?

Algumas inquietações presentes no livro são naturais a quem trabalha no meio, mas minha preocupação sempre foi de não escrever uma história que fosse exclusivamente sobre cinema. Claro que a história se passa num set, claro que as funções dos personagens são importantes para entendê-los, mas boa parte dos conflitos diz respeito a experiências universais. 

Mesmo a relação que esses personagens têm com o próprio trabalho não diz respeito exclusivamente ao que costumamos pensar quando falamos de cinema. Acho muito provável que um jornalista, ou um advogado, ou um farmacêutico, acabe se identificando com o que os personagens de Frankito em chamas têm a dizer sobre o trabalho e a vida.

A história se desenvolve em especial entre Porto Alegre, um pequeno balneário no Uruguai (Pedrerita) e São Paulo. O que cada um desses ambientes representa para ti, em tua caminhada pessoal?

Porto Alegre é uma cidade que eu conheço muito bem e que fazia muito sentido estabelecer como o “ponto de origem” da história. São Paulo está no centro da produção audiovisual do país, então era natural que a narrativa mostrasse um pouco esse intercâmbio, como ocorre muito na realidade, aliás. Já Pedrerita, lugar completamente ficcional, nasceu da necessidade de a história ter um palco que fosse estranho a todos, mas que também tivesse algo de familiaridade.

Uma metáfora central no romance está no título do filme, “Aves migrantes”. Como essa expressão simboliza para ti, enquanto artista, o mundo atual?

Podemos ler esse título como metáfora, claro. E a ideia das “aves migrantes” talvez seja relevante não apenas ao mundo atual, mas à experiência humana como um todo. Perdidos em nossas preocupações do cotidiano, ignoramos que tudo é temporário e todos os arranjos são provisórios. 

Migramos ao longo da vida, de experiência em experiência, às vezes chorando e às vezes sorrindo, porém sempre conduzidos por esse magnetismo que nos faz seguir adiante. Isso é algo que está no centro das minhas preocupações e que atravessa o livro do começo ao fim.

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Marcio Souza

Jornalista, formado pela Unisinos, com MBA em Marketing, Estratégia e Inovação, pela Uninter. Completo, em 31 de dezembro de 2023, 27 anos de comunicação em rádio, jornal, revista, internet, TV e assessoria de comunicação.

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