Beatrice Dummer nos vinhedos de Montemagno. Créditos: Niccolò Fusaro/Divulgação/GS
Em comemoração aos 150 anos da imigração italiana no sul do Brasil, sigo explorando as raízes que ligam os dois países. Percebo que o oceano não afasta os descendentes italianos de suas origens. Mesmo com o avanço da história e as reinvenções culturais, alguns valores permanecem inabaláveis: vínculo familiar, apreço pela culinária, orgulho do sobrenome e dedicação ao trabalho. São traços que persistem, mesmo em terras distantes, como uma flor que, ao ser semeada em novos solos, finca raízes profundas e floresce, preservando sua essência e beleza.
Dessa vez, minha jornada me levou a Montemagno, uma pequena comuna nas colinas ondulantes do Monferrato – região histórica do Piemonte, conhecida por sua tradição vitivinícola secular e pelo reconhecimento como Patrimônio Mundial da Unesco em 2014. As paisagens vitivinícolas de Langhe-Roero e Monterrato foram valorizadas pela preservação de técnicas ancestrais e pela harmonia entre homem e ambiente. Consideradas “um testemunho vivo excepcional da tradição histórica da cultura dos vinhedos, dos processos de vinificação, de um contexto social, rural e de um tecido econômico baseado na cultura do vinho”, essas paisagens integram práticas tradicionais ao solo e ao clima locais, consolidando sua relevância.
Onde hoje se encontram estas belas colinas, há milhões de anos havia o mar. Com o passar do tempo, a sedimentação da areia deu origem a rochas porosas que podem ser escavadas e esculpidas facilmente, até mesmo com o uso de uma colher. Parte dessa herança cultural inclui o peculiar Monferrato degli Infernot, cujo nome significa “pequeno quarto sem janelas”. Trata-se de estruturas subterrâneas, esculpidas manualmente pelos antigos moradores sob o solo de suas próprias casas, utilizadas para armazenar vinhos devido às condições ideais de temperatura que garantem a preservação da bebida. Os infernots simbolizam a engenhosidade e a preservação do trabalho manual, reforçando o valor histórico da região. E cada infernot era decorado de acordo com a criatividade e o talento do escultor.
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A visita, organizada pelo programa Dolce Vita, da escola Leonardo da Vinci, contou com a recepção da prefeita Sandra Contino, professora aposentada de história da arte, cuja presença foi essencial para entendermos a singularidade de Montemagno.
Com menos de mil habitantes, Montemagno Monferrato é exemplo de como pequenas cidades italianas preservam suas tradições com orgulho. A prefeita nos guiou por um passeio contemplativo, típico de uma passeggiata italiana, convidando-nos a desacelerar e permitir que a atmosfera tranquila do lugar nos envolvesse. No alto da colina, o castelo medieval, com papaveros vermelhos escorrendo por suas muralhas antigas, destaca-se no horizonte, emoldurado pelas vinhas que revestem os relevos suaves.
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A paisagem é marcada por colinas suaves e férteis que, em certos aspectos, podem evocar os pampas do Rio Grande do Sul. Essas características naturais, somadas ao solo calcário e ao clima temperado, formam ao longo dos séculos um terroir singular, ideal para o cultivo de uvas nobres. Dessa combinação nascem vinhos renomados, como Barbera, Grignolino e Ruchè.
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O enoturismo tornou-se parte essencial da economia local, atraindo visitantes interessados em conhecer de perto o processo artesanal de produção e degustar vinhos que traduzem a autenticidade do solo piemontês. Nesse contexto, nossa visita ao vinhedo familiar de Dante Garrone proporcionou um mergulho ainda mais profundo na alma da região. Herdeiro de uma tradição transmitida por gerações, Dante nos recebeu com genuína hospitalidade, satisfeito por poder compartilhar seus conhecimentos sobre a terra que cultiva com tanto apreço. Quando lhe perguntei como era perpetuar o legado iniciado por seu avô, sua resposta, carregada de humildade, revelou um misto de orgulho e responsabilidade.
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Dante confessou que manter viva a herança familiar é, ao mesmo tempo, um privilégio e um desafio constante. Carrega o peso de honrar os esforços dos antepassados que, com suor e perseverança, desbravaram uma terra ainda selvagem, realizando um trabalho árduo e enfrentando adversidades físicas e emocionais. Para ele, fazer vinho vai muito além de uma atividade produtiva: é um dos poucos ofícios em que se participa de cada etapa do processo – da semeadura e do cultivo à colheita, à fermentação e, por fim, ao produto acabado, pronto para ser apreciado.
Percebi que a relação de Dante com o vinho reflete minha conexão com a arte e a música: ambos exigem cuidado, paciência e dedicação em cada fase da criação. Tanto para ele quanto para mim, poucas coisas são tão gratificantes quanto ver nosso trabalho tocando as pessoas, seja em uma taça de vinho ou em uma poesia. A criatividade nos dá um senso de propósito e realização que não se explica – é a certeza de que podemos, sim, transformar nossa imaginação em beleza e compartilhar com o mundo.
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Naturalmente, perguntei-lhe o que, afinal, define um bom vinho. Sua resposta foi surpreendentemente simples: “Aquele que te dá vontade de beber outra taça”. Um bom vinho não precisa ser robusto nem carregado de personalidade; pode ser leve e sutil, desde que desperte o desejo pela repetição. Para Dante, o valor está na experiência prazerosa que a bebida proporciona, mais do que em características técnicas e específicas.
Outro aspecto relevante abordado por Dante foi a preocupação com a sustentabilidade e a preservação ambiental. Ele destacou a importância de respeitar a natureza, evitando desgastar o solo de maneira intensiva. Atualmente, as grandes chuvas que atingem a região vêm provocando a erosão das camadas férteis, comprometendo a produção dos pequenos agricultores. Essa realidade desperta um alerta: a consciência ambiental deve ser compartilhada por todos nós para que as futuras gerações possam continuar em harmonia com o território que habitam.
Para além do orgulho de manter um legado familiar, há também as batalhas cotidianas e os desafios de viver no campo. O pequeno produtor desempenha um papel essencial na preservação das tradições locais, tanto na Itália quanto no Brasil. Manter viva essa cultura não é apenas uma escolha, mas um compromisso com as raízes e com a continuidade de um modo de vida que persiste apesar do tempo e das adversidades.
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Agradeço ao programa Dolce Vita da Scuola Leonardo da Vinci pela vivência inspiradora que originou este artigo. Para quem também deseja participar dessa experiência enriquecedora, deixo aqui o site oficial www.scuolaleonardo.com/pt/curso-dolce-vita.html e o e-mail para contato, scuolaleonardo@scuolaleonardo.com.
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