Não foi fácil atravessar 2024, mas sobrevivemos (embora ainda faltem dez dias). Em certos momentos, especialmente aqui no Estado, em maio, a sensação foi de atravessar uma noite sem lua sob a luz de lampiões, impulsionado só pela vontade de enxergar o dia seguinte. Muitos, de algum modo, cruzaram as águas do ano em uma “embarcação desconfortável e tosca”, como personagens de um conto de Lygia Fagundes Telles – o conto Natal na barca.

Uma das grandes escritoras brasileiras, Lygia apresenta esta história curiosa. Uma embarcação faz a travessia de um rio durante a noite de Natal, levando quatro pessoas que não se conhecem: mulher de idade incerta (a narradora), um homem embriagado e uma jovem com seu filho, criança de colo.

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No início, a atmosfera é de silêncio e estranhamento. Por que eles não estavam junto de seus familiares e amigos, naquela madrugada de 25 de dezembro? “Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.”

A situação melhora quando a mãe decide conversar. Tendo a outra mulher como ouvinte, conta uma vida de dificuldades. Perdera o filho primogênito de forma trágica, mas acreditava em Deus e no futuro. Agarrava-se em sua fé.

O filho que agora traz no colo está doente e com febre, mas ela espera conseguir atendimento médico do outro lado do rio. “Deus não vai me faltar.” A narradora, então, aproxima-se do bebê para vê-lo melhor e, assustada, tem a impressão de que está morto. Ele não se mexera em nenhum momento, rígido, olhos cerrados. Preocupa-se, mas não tem coragem de dizer nada à mãe.

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Amanhece, e a barca chega ao ponto de desembarque. Antes de sair, a mãe brinca com a criança e ela abre os olhos, “aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente”. O menino estava vivo, sonolento, mas esbanjando vida.

Tinha parecido a morte, mas… foi só a escuridão provisória da noite. E não há noite que impeça a chegada da manhã, é o que Lygia parece dizer. Para nós, que estamos na mesma barca, à espera de manhãs melhores.

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(Com adaptações, publicado originalmente em dezembro de 2021)

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Guilherme Andriolo

Nascido em 2005 em Santa Cruz do Sul, ingressou como estagiário no Portal Gaz logo no primeiro semestre de faculdade e desde então auxilia na produção de conteúdos multimídia.

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