Política

“Não há como entender o mundo sem entender a China”, diz o jornalista Ricardo Geromel

Com 1,4 bilhão de habitantes, sete vezes a população brasileira, a China não iria mesmo passar despercebida no cenário global. Ainda que a Índia agora a tenha ultrapassado como país mais populoso, a condição de segunda maior economia e de mercado consumidor imenso faz dos chineses parceiros muito estratégicos. 

Poucos em realidade brasileira têm tamanho domínio para avaliar as potencialidades do estabelecimento de vínculos com o gigante asiático como paulista Ricardo Geromel. Aos 38 anos, na condição de jornalista, empresário e consultor, ele ocupa-se da geopolítica associada à China como atividade de rotina. Para os gaúchos, o sobrenome talvez chame atenção: é irmão de Pedro Geromel, ex-zagueiro do Grêmio. 

Em 2019, Ricardo analisou em livro os pilares que fazem daquela nação uma potência. O poder da China foi lançado pela editora Gente, em 288 páginas, e pode ser encontrado nas livrarias por R$ 74,90. Na obra, busca fornecer ferramentas que permitam decodificar o pais em questão. 

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Diante do fato de que produtos, tecnologias e investimentos chineses inserem-se de maneira crescente em todas as regiões (no Vale do Rio Pardo, também no setor do tabaco), o interesse em torno daquela nação tende a ser inevitável. Sobre esse contexto, Ricardo Geromel concedeu entrevista exclusiva à Gazeta do Sul, por WhatsApp. As respostas, por sinal, foram enviadas a partir da China, onde se encontrava nessa semana em mais uma missão de estreitamento de laços.

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Entrevista

Gazeta do SulNa avaliação do senhor, como a China tem se saído até o momento no embate de tarifas que têm sido aplicadas por Trump?

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Ricardo Geromel – A China respondeu de forma estratégica e resiliente. Em vez de reagir impulsivamente, buscou fortalecer o mercado interno e diversificar parceiros comerciais. As tarifas impostas pelos EUA, embora desafiadoras, aceleraram transformações que já estavam em curso, como o foco em inovação tecnológica, transição energética, reindustrialização e consumo doméstico. A China não apenas resistiu ao impacto, como encontrou novas rotas de crescimento, mantendo sua posição como a maior fábrica do mundo e uma potência tecnológica. 

Você pode afirmar que a China mantém uma exposição significativa ao mercado americano (≈ 15% das exportações para os EUA), o que mostra importância estratégica.

Ao mesmo tempo, os dados mostram que mais da metade do comércio externo da China está hoje com economias “emergentes” ou com países participantes da BRI – o que reforça seu argumento de que a China está diversificando geografias e parceiros.

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 Isso permite sustentar uma narrativa pró‑China sem ignorar a interdependência com os EUA, e ao mesmo tempo destacar a força crescente da China junto a mercados emergentes.

Como os chineses têm agido e reagido no sentido de evitar que as tarifas norte-americanas causem estragos em sua realidade e em relações estratégicas que mantenham ou alimentem?

A China respondeu com uma política de “dupla circulação”, focando simultaneamente no fortalecimento do mercado interno e na continuidade da abertura econômica. Buscou acordos bilaterais e multilaterais – como a Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP) –, investiu em infraestrutura crítica por meio da Nova Rota da Seda e continuou atraindo investimentos estrangeiros. 

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Tudo isso sem fechar portas ao diálogo com os EUA. A China tem demonstrado que é possível crescer mesmo em um ambiente externo desafiador, sempre priorizando estabilidade e visão de longo prazo.

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O que a China representa para os Estados Unidos e, em outro sentido, o que os Estados Unidos representam para a China?

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Os dois países são interdependentes, mesmo em meio a tensões. A China representa para os EUA um mercado vital, uma parceira econômica e, ao mesmo tempo, um competidor estratégico. Já os EUA seguem sendo referência em inovação e consumo, além de parceiro comercial importante para a China. É uma relação complexa, mas inevitável. A lógica atual não é de confronto absoluto, e sim de competição com convivência – o que exige maturidade e pragmatismo de ambos os lados.

Aliás, o que a China hoje representa efetivamente na geopolítica global? É um parceiro incontornável?

Sem dúvida. A China é um ator geopolítico de primeira grandeza. Está presente em todos os grandes fóruns internacionais, é um dos maiores financiadores do desenvolvimento global, investe em infraestrutura em mais de 150 países e lidera com iniciativas como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura. Em temas como transição energética, tecnologia, segurança alimentar e desenvolvimento sustentável, a China não é apenas um parceiro importante – ela é essencial.

O que (e em que momento isso ocorreu) motivou a curiosidade do senhor e a sua imersão na China como tema de interesse?

Nasci e cresci no Brasil. Fui fazer faculdade nos Estados Unidos graças a uma bolsa para jogar futebol. Me formei em 2008, logo antes da grande crise. Meu primeiro emprego foi para uma empresa de Hong Kong, que foi adquirida pela gigantesca COFCO. 

Depois, fui fazer um mestrado em Paris, conheci uma colega estudante chinesa e tivemos um relacionamento afetivo por anos. Não deu certo, mas talvez tenha sido ali que o dragão me mordeu. 

Em 2011, abri empresa em Pequim que levava jogadores, árbitros e técnicos de futebol para fazer um período de treinamento no Brasil. 

Em 2019, publiquei o livro O poder da China. Hoje, tenho uma empresa que foca em conectar o melhor do Brasil com o melhor da China (e do mundo). Já levei mais de mil empresários para a China em agendas sempre feitas sob medida para aprenderem, conhecerem os protagonistas na China e, eventualmente, fazerem negócios. 

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O poder da China, seu livro, foi lançado em 2019. Desde então, como esse poder se apresenta ou evoluiu? Como os acontecimentos dos anos mais recentes se refletem nas questões que o senhor aborda nessa obra?

O livro tratava da ascensão da China com base em pilares estruturais: tecnologia, infraestrutura, planejamento estratégico e cultura milenar. De 2019 para cá, esses pilares só se reforçaram. A pandemia acelerou a digitalização e destacou a resiliência da cadeia produtiva chinesa. O país também avançou no campo da inteligência artificial, da energia limpa e da mobilidade elétrica. O mundo está descobrindo que o “poder da China” é silencioso, pragmático e persistente.

Eu escrevi um artigo para a Forbes USA em 2011, “Is Brazil a derivative of China?” (https://www.forbes.com/sites/ricardogeromel/2011/08/24/is-brazil-a-derivative-of-china/)

Me assusta o quão pouco o melhor da China é discutido no Brasil. É o nosso maior parceiro comercial desde 2009 e o maior parceiro comercial de mais de 120 países. Não há como entender o mundo sem entender a China. 

Há algum plano de fazer uma atualização ou uma revisão dessa sua obra, ou dessa abordagem, em relação à economia chinesa?

Sim. Tenho refletido sobre uma segunda edição ou um novo livro que aprofunde temas como transição energética com características chinesas, o papel das cidades inteligentes e o avanço da diplomacia econômica chinesa. O mundo está mudando, mas a China continua sendo protagonista dessa mudança. Quem sabe… 

Onde residem, no entendimento do senhor, os grandes trunfos e os grandes diferenciais da China, além, claro, do fato de a nação hoje contabilizar mais de 1,4 bilhão de habitantes?

Planejamento de longo prazo, foco em educação e infraestrutura, e uma cultura milenar que valoriza o coletivo e a estabilidade. A China tem a capacidade de executar projetos complexos com uma velocidade impressionante. Além disso, seu ecossistema digital, como o uso integrado de pagamentos móveis, big data e inteligência artificial, é referência global.

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Quando o senhor mira o futuro, em uma década, digamos, em que áreas vislumbra que a China avançará com mais vigor e competência?

Sem dúvidas tecnologia verde, inteligência artificial, saúde de ponta e mobilidade do futuro. A China quer liderar a transição para uma economia de baixo carbono e já investe massivamente em veículos elétricos, energia solar e baterias. Também aposta em biotecnologia e cidades inteligentes. A ambição é clara: não apenas acompanhar, mas liderar a próxima revolução industrial.

O senhor tem ido com frequência à China? O que mais tem marcado ou chamado a atenção, entre uma visita e outra?

Sim, visito a China regularmente. Inclusive te escrevo daqui. De dentro do escritório da maior empresa de ativos eólicos do mundo. O que sempre me impressiona é a velocidade das mudanças. Uma cidade pode mudar completamente em três ou quatro anos. A infraestrutura é de classe mundial, e existe uma confiança palpável no futuro. Outro ponto que chama atenção é a capacidade de adaptação e reinvenção, tanto do Estado quanto da população chinesa.

Além da economia e da produção, a cultura chinesa também pode vir a se projetar mais para o mundo (e no Brasil, claro), a exemplo do que a Índia e a Coreia do Sul têm feito?

Sem dúvida. O que mais sinto falta de morar na China é da culinária! Sou apaixonado. Com todo respeito, quem vai à China e reclama da cozinha é porque foi mal assessorado. São opções demais para todos os paladares. A cultura chinesa é riquíssima – do cinema à gastronomia, da filosofia à medicina tradicional. Já vemos o aumento do interesse global pelo mandarim, pelo cinema chinês e pelas obras literárias. A China está investindo em soft power e, com o tempo, sua cultura ocupará um espaço maior no imaginário global.

Nessa cultura, o que mais o senhor aponta como digno de atenção ou de interesse entre os brasileiros?

O principal de todos que eu gostaria de destacar é a ênfase na educação. Nosso Brasil só vai aumentar a produtividade se melhorarmos a educação pública, onde estão 80% das nossas crianças. 

O respeito pelos mais velhos, o pensamento estratégico de longo prazo e a valorização da harmonia social são traços que oferecem lições importantes para o Brasil. Também destaco o confucionismo, que molda valores como meritocracia, disciplina e ética – temas universais e profundamente atuais.

Como a China vê o Brasil hoje? Com simpatia e confiança?

Sim. O Brasil é parceiro estratégico da China há décadas. Somos complementares: o Brasil fornece alimentos e energia, a China fornece tecnologia e capital. Além disso, há afinidade entre os povos. A China valoriza a estabilidade e a confiança, e o Brasil, quando se posiciona de forma coerente, é visto como aliado de longo prazo.

E como o senhor entende que os brasileiros, em especial os que atuam em funções públicas ou privadas que envolvam as relações de mercado ou internacionais, deveriam se portar em relação à China?

Comprometimento de longo prazo seria o ideal. O mínimo é respeito, curiosidade e visão estratégica. A China não pode ser compreendida com categorias simplistas. É preciso estudar, escutar e entender que os negócios lá são construídos com base em relações de confiança de longo prazo. Não se trata de ganhar uma negociação — e sim de construir uma parceria duradoura e de longo prazo. 

Na realidade brasileira, falar de comunismo em relação à China, como um fator para rechaçar aproximação, ainda faz algum sentido?

Hoje, essa abordagem é anacrônica. A China criou um modelo único, onde o papel do Estado e do mercado se equilibram de maneira particular. O que importa, na prática, são os resultados: 800 milhões de pessoas saíram da pobreza, o país lidera em tecnologia e é o maior parceiro comercial do Brasil. Ideologia não deve ser barreira ao pragmatismo.

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Que setores brasileiros melhor e mais rapidamente aprenderam a ser parceiros da China? Onde essa relação já é eficiente e onde pode e deve melhorar?

Agronegócio e mineração são exemplos bem-sucedidos. Mas há muito espaço para evoluir em áreas como inovação, saúde, fintechs, energia limpa e turismo. O Brasil pode exportar mais valor agregado, atrair mais investimentos e cooperar em pesquisa. Falta, muitas vezes, conhecimento cultural e institucional para aprofundar essas relações.

Que barreiras, ou que empecilhos, qualquer cidadão, ou mesmo um empresário, precisa aprender a superar ou eliminar para aproximar-se da China?

A principal barreira é o desconhecimento. Muitos ainda têm visões estereotipadas sobre a China. É essencial estudar, aprender. Você precisa primeiro conhecer o melhor da China. Sentir o cheiro. Olhar no olho. Repito: comprometimento de longo prazo seria o ideal. O mínimo é respeito, curiosidade e visão estratégica. A China não pode ser compreendida com categorias simplistas.

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Marcio Souza

Jornalista, formado pela Unisinos, com MBA em Marketing, Estratégia e Inovação, pela Uninter. Completo, em 31 de dezembro de 2023, 27 anos de comunicação em rádio, jornal, revista, internet, TV e assessoria de comunicação.

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Marcio Souza

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