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Não me interprete mal

Então, para usar um termo da moda, que “narrativa” vou trazer hoje? É chato nada existir de verdade. Ligo a televisão e vejo um míssil – um míssil “narrativo”, provavelmente – explodir ao lado de um carro na Ucrânia. Não era um veículo militar, mas há quem diga que a guerra só mata soldados. Nada de civis assassinados, prédios residenciais destruídos, bombardeios desenfreados. Isso é pura invenção.

Se tudo se resume a tirar coelhos da cartola, para que acrescentar ruídos ao alarido geral? No entanto, sempre há um elemento concreto que independe da “minha narrativa”. O problema da velha frase “não há fatos, só interpretações” é que toda interpretação se refere a um fato. No clássico Rashomon (1950), filme de Akira Kurosawa, quatro testemunhas em um julgamento falam sobre um caso de estupro e assassinato. Cada depoimento revela um enredo diferente, conflitante, a partir do ponto de vista do narrador. Mas algo é imutável: houve um crime, obviamente. Ninguém o nega.

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Hoje em dia, diante de um crime, dizem: “Não aconteceu nada. Isso não existiu”. Como se falso e verdadeiro fossem questão de preferência. Mas a verdade, como observa a filósofa Hannah Arendt em Entre o passado e o futuro, é o que não podemos apagar por conveniência. “Metaforicamente, ela é o solo sobre o qual nos colocamos de pé e o céu que se estende acima de nós”, compara. Mais de meio século depois, o historiador israelense Yuval Harari dirá o mesmo com outras palavras.

No livro 21 lições para o século 21, Harari afirma a necessidade de “compromisso com a verdade”. Não é uma questão de crença, mas de evidência. Muitas vezes, crenças fortes e inabaláveis são necessárias justamente porque a narrativa não é verdadeira.

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No fogo cruzado das convicções pessoais que se veem como universais, a vontade, por vezes, é deixar a arena até o debate ficar civilizado. Fugir para as montanhas como Jeremiah Johnson em Mais Forte que a Vingança (filme de 1972). Cansado de uma civilização que produziu a Guerra Civil Americana, Jeremiah, ex-combatente no conflito, tenta iniciar uma vida nova sozinho, em meio à natureza inóspita. Longe da violência que conheceu. Mas as coisas não serão fáceis. Jeremiah não encontrará a paz, mas também não vai voltar. É o mundo, ora. Só resta ir em frente.

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Guilherme Andriolo

Nascido em 2005 em Santa Cruz do Sul, ingressou como estagiário no Portal Gaz logo no primeiro semestre de faculdade e desde então auxilia na produção de conteúdos multimídia.

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