Política

Novo projeto de lei visa proteger crianças e adolescentes no ambiente digital

“O que vocês estão prestes a ver é um assunto extremamente sério. O assunto abordado é pesado e não é para todos os públicos. Se você não se sente à vontade, recomendo que saia do vídeo.” 

Foi com esse alerta que o influenciador digital Felipe Bressanim Pereira, o Felca, iniciou o vídeo adultização. Com 49 minutos de duração, ele mostrou os atos desesperados e criminosos de pais e adultos que expõem os filhos no mundo digital para lucrarem nas redes. Demonstrou também como pedófilos e predadores sexuais consomem conteúdos infantis sem cunho sexual para aumentar a rede de pornografia infantil.

O objetivo, segundo Felca, foi retirar o tema das sombras e trazê-lo para a luz. “Isso é algo que pouca gente tem falado na internet, mas está acontecendo até hoje, bem debaixo do nosso nariz. Esse vídeo vai ter um formato de funil. A gente vai começar mais leve, depois afunilar até eu começar a denunciar crimes”, frisou.

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Publicado no dia 6 de agosto, o vídeo rendeu, somente no YouTube, 48 milhões de visualizações até a quarta-feira, dia 27. Duas semanas após a divulgação, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei sobre o tema que havia sido proposto há quase três anos.

A proposta passou pelo Senado, na última quarta-feira, 27, e aguarda por sanção federal.  Ela estabelece obrigações sobre a presença de crianças e adolescentes nos meios digitais.  

Em meio às repercussões do vídeo adultização, profissionais entrevistados pela Gazeta do Sul analisam as consequências do ato de Felca. Uma coisa fica clara: se antes os perigos para as crianças estavam fora de casa, a maior ameaça hoje se encontra nas telas, espalhada pelo ambiente digital.

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Em outubro de 2022, o senador Alessandro Vieira (PSDB/SE) apresentou o projeto de lei n° 2628, que estabelece a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais. Justificou, na época, a necessidade de avançar em relação à segurança do uso das redes e acompanhar as inovações tecnológicas disponíveis para o público infantojuvenil.

Vieira destacou que diversas organizações da sociedade civil ajudaram, por mais de um ano, a compor essa proposta. Salientou que as normas apresentadas estão de acordo com os regramentos aplicados em outros países, como Estados Unidos, Noruega, Japão, China e Holanda. 

“As redes sociais devem proibir a criação de contas a crianças (menores de 12 anos) e devem monitorar e vedar conteúdos que visem à atração evidente desse público, além de vedar publicidade infantil e estabelecer mecanismos de verificação de idade – podendo inclusive requerer dos usuários documento de identidade válido”, afirmou o senador no documento. 

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O projeto aprovado no Congresso, que segue para a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cria um Estatuto da Criança e do Adolescente Digital (ECA Digital), para a proteção do público infantojuvenil na internet e nas redes sociais. Determina que os fornecedores de produtos e serviços de tecnologia da informação adotem medidas para prevenir o acesso de menores de idade a conteúdos prejudiciais (pornografia, bullying, incentivo ao suicídio e jogos de azar), obrigando inclusive a remoção de publicações. 

Caso sejam identificados materiais relacionados a abuso sexual, aliciamento, exploração ou sequestro, as empresas precisam apagar e notificar as autoridades, nacionais e internacionais, imediatamente. Além disso, será necessário disponibilizar aos usuários mecanismos para denunciar qualquer violação de direito.

Nas redes sociais, as empresas deverão garantir que contas de crianças e adolescentes de até 16 anos estejam vinculadas à conta de um de seus responsáveis legais. Se a conta estiver em desconformidade com os requisitos de idade, os provedores deverão suspender o acesso do usuário, permitindo ao responsável legal apresentar uma apelação nos termos do regulamento.

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Quanto ao tratamento de dados de crianças e adolescentes, as redes sociais deverão criar regras. O texto ainda proíbe a criação de perfis comportamentais de usuários menores de idade para fins de direcionamento de publicidade comercial. 

Além disso, redes que possuem mais de um milhão de crianças e adolescentes usuários deverão apresentar, semestralmente, relatórios contendo os canais disponíveis para denúncias, a quantidade recebida e de moderação de conteúdo ou de contas. Também deverão informar as ações para identificar contas infantis e os aprimoramentos para proteger os dados pessoais e privacidade desse público. 

O usuário que publicar um conteúdo considerado abusivo precisará ser notificado e receberá uma justificativa para a retirada da publicação. Ele terá direito a contestar a remoção. E se a denúncia ocorrer de maneira excessiva, o autor poderá sofrer sanções, incluindo a suspensão ou perda da conta caso as acusações recorrentes sejam falsas.

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O projeto de lei também estabelece sanções para os infratores. Para as plataformas, multa simples, que pode chegar a 10% do faturamento do grupo econômico no Brasil. Ausente o faturamento, ela pode variar de R$ 10,00 a R$ 1.000,00 por usuário cadastrado, limitando-se no total a R$ 50 milhões. 

“As redes sociais devem proibir a criação de contas a crianças (menores de 12 anos) e devem monitorar e vedar conteúdos que visem à atração evidente desse público, afirmou o Senador  Alessandro Vieira.

Aqueles que não cumprirem as medidas também poderão sofrer suspensão temporária ou proibição de exercício das atividades. As penalidades mais severas serão determinadas pelo Poder Judiciário.

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Apesar de pioneiro, projeto tem gargalos a preencher

A advogada Angeline Kremer Grando, especialista em proteção de dados e relações de consumo, evidenciou em entrevista à Rádio Gazeta FM 107,9 que o “PL da adultização” é pioneiro ao regrar o ambiente online. Em especial, a atuação das plataformas digitais que são ou podem ser consumidas pelo público infantojuvenil.

Angeline Kremer Grando na Rádio Gazeta | Foto: Expedito Engling

“Ainda há pouca legislação sobre o ambiente digital. Há a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, mas essas mais setoriais ainda estão em discussão. Então, é a primeira que se vai falar sobre essas regras”, afirmou Angeline aos apresentadores Marcio Souza e Lucas Malheiros, no programa Estúdio Interativo.

A especialista detalhou que, a partir da sanção do texto, crianças não poderão ter um perfil independente nas redes, o qual deverá ser vinculado aos pais ou responsáveis legais. Outro ponto importante para Angeline é a proibição de publicidade direcionada a partir de estudo de dados de criança e de adolescente.

“Os dados são o novo petróleo, porque, na medida em que a gente produz tantas informações, ficam nosso histórico de consumo e nossos cookies [arquivos que identificam os usuários que navegam nas páginas]. Nós somos informações digitais, o tempo todo. E com os bancos de dados e a análise, o processamento, a computação atrás disso, é quase sacanagem para nós resistirmos a uma publicidade tão assertiva”, comentou.

Segundo a advogada, que também é especializada em neuromarketing, uma vez que o córtex pré-frontal [região do cérebro responsável pelo raciocínio] ainda está em desenvolvimento, as crianças não têm controle inibitório. Isso dificulta que elas consigam resistir aos impulsos. 

Considera fundamental também o fato de que não será possível monetizar, a partir dos dados, conteúdo de crianças e adolescentes. “Isso quebra a espinha dorsal da economia digital, que é justamente coletar esses dados para serem analisados e para a publicidade direcionada ser enviada.” 

Entretanto, apesar das medidas inovadoras, a advogada avalia que a proposta já nasce com um problema escancarado pelo influenciador Felca no vídeo “adultização”. Isso porque, segundo ela, o PL deixa uma brecha para os casos em que as próprias famílias ou responsáveis legais são responsáveis por explorarem os próprios filhos. 

Segundo Angeline, há milhares de perfis de menores administrados pelos pais, muitos com forte carga de sexualização, exploração comercial e exposição excessiva. “Não poderia ter passado sem justamente responder a essa situação”, frisou.

Na sua avaliação, a responsabilidade fica difusa. “Fala-se em proibir monetização e impulsionamento, mas não há um mecanismo claro para coibir ou sancionar pais que exploram os próprios filhos”, observou. Outro ponto é a falta de previsão de políticas públicas para apoio às famílias ou para educação parental no intuito de romper a exploração digital que, muitas vezes, nasce dentro de casa. 

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Remendando as brechas

Para Angeline Kremer Grando, o PL é um passo civilizatório inspirado nas boas práticas internacionais. No entanto, ainda precisa ser testado na sua efetividade regulatória.

Há alguns pontos que podem gerar problemas. Um deles refere-se à remoção de conteúdos ofensivos. Com a proposta, é necessário identificar tecnicamente o material, notificar quem publicou e garantir direito de recurso. Para a advogada, apesar de trazer mais transparência e evitar abusos, no momento em que é exigida uma identificação técnica, proibindo denúncias anônimas, torna mais difícil ao usuário comum fazer a notificação. “O risco é que essa burocracia acabe atrasando a retirada de conteúdos graves, como casos de exploração infantil.”

Na avaliação da profissional, o projeto carece de aperfeiçoamento em três frentes. Angeline aponta a necessidade de prever, de forma expressa, a culpabilização dos próprios responsáveis que expõem de forma indevida ou exploram economicamente os menores. “A regulação não pode se restringir às plataformas se parte relevante da adultização e da exploração digital ocorre na esfera doméstica”, afirma. 

Além disso, acredita que o procedimento de denúncia precisa ser mais simplificado. Para ela, o formato proposto pode burocratizar a resposta e atrasar a remoção de conteúdos mais graves.

Ela aponta ainda uma fragilidade institucional, já que o texto cria uma nova autoridade administrativa autônoma para fiscalizar, mas sem previsão clara de estrutura, orçamento ou integração com a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e o Ministério Público. “A criação de mais uma entidade, quando a própria ANPD ainda carece de consolidação e capacidade técnica, pode resultar em sobreposição de competências e baixa efetividade.”

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Segurança via  educação digital

Para a advogada Angeline Kremer Grando, as famílias precisam estabelecer limites quanto ao mundo virtual. “Se colocamos portão e câmera de segurança nas nossas casas, temos que começar a nos portar melhor no ambiente digital. Isso é fulcral”, ponderou.  

A educação digital precisa ser trabalhada de forma estruturada e contínua. A começar nas escolas, integrando o currículo para desenvolver, desde cedo, o pensamento crítico, a capacidade de reconhecer manipulações publicitárias e a atenção à privacidade. Apontou a necessidade de programas voltados aos pais e responsáveis, uma vez que a exposição começa dentro de casa. 

Conforme Angeline, também são necessárias ações na sociedade, desde campanhas públicas, produção de conteúdo educativo até engajamento efetivo das próprias plataformas em iniciativas de cidadania digital. “Em síntese, trata-se de uma estratégia de prevenção cultural: formar crianças, adolescentes e adultos para lidar com a tecnologia de maneira responsável, consciente e protetiva, em vez de apenas reagir a danos já consumados.”

Ela ressaltou as consequências da falta de educação cibernética. Destacou o fato de que poucas pessoas sabem que os cookies coletam todo o histórico de consumo dos usuários na rede. “Todo mundo tem preguiça de gerenciar, ninguém olha. Somos os maiores responsáveis pela nossa privacidade. Existe algo que só nós podemos fazer”, frisou.

A exposição nas redes sociais também demonstra o quanto falta atenção entre os usuários. Mesmo aqueles perfis restritos podem ser alvos de grupos com más intenções. “Pode haver um terceiro olhando as fotografias dos meus filhos, olhando os dados de geolocalização, muitas vezes olhando onde é que é a minha casa, qual é a minha rotina, acompanhando nas publicações. Precisamos ter um pouco mais de malícia e buscar a educação cibernética”, alertou.

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Famílias perdidas no tempo

O procurador de Justiça Fábio Costa Pereira não vê com bons olhos o termo “adultização”. Responsável pelo Núcleo de Prevenção à Violência Extrema (Nupve) do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), considera que o problema, embora grave, está inserido em um contexto ainda maior. 

Foto: Rodrigo Assmann

“Adultos predando e explorando adolescentes e crianças é apenas um pequeno recorte do problema. Ele é muito maior. O cerne da questão é que a violência de todo gênero, nas subculturas violentas, virou moeda. Há a verdadeira precificação da dor, que pode ser com dinheiro, hype, cargos em servidores, presentes digitais, criptomoedas e o que imaginares”, detalhou.

Pereira coordena o Projeto Sinais, iniciativa do MPRS voltada à prevenção de casos de violência extrema envolvendo crianças e adolescentes. Até julho deste ano, a iniciativa já havia passado por 179 municípios do Rio Grande do Sul, alcançando um público aproximado de 4.500 pessoas. 

Em entrevista à Gazeta do Sul, o procurador afirmou que o fato de os adolescentes estarem em casa não significa que estejam seguros. Sem barreiras linguísticas e geográficas no mundo digital, eles podem ter acesso a conteúdos impróprios.

“Talvez o maior problema é que as famílias continuam com um pensamento do século 20, de que os filhos quando estão em casa, estão seguros, e não é bem assim. Porque as telas de computador e do celular são portais que levam eles para uma outra dimensão, cheia de predadores”, frisou.

Por isso, ele recomenda que os pais sigam fazendo, no mundo virtual, aquilo que fazem fora das telas. A começar por monitorar o que realizam no ambiente digital, com quem estão andando, e limitar o tempo em tela.

O procurador atenta para o fato de que, diante da velocidade do mundo digital, que se adapta e se transforma rapidamente, os perigos e ameaças mudam a toda hora. E isso faz com que as famílias precisem aumentar os cuidados e as atenções. Conforme Pereira, tudo começa com uma relação franca. 

“Os pais não podem exigir que os filhos não acessem as telas. Se a primeira coisa que fazem é chegar em casa e não dão tempo de qualidade, eles se isolam nas telas. É preciso ficar atento, principalmente nos comportamentos. Quando o filho começa a ficar demais no quarto, quando começa a ficar demais no mundo virtual, começa a trocar o real pelo virtual e a se isolar, algo está errado.

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Karoline Rosa

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