Assim que sentou pela primeira vez na cadeira de governador, 100 dias atrás, José Ivo Sartori (PMDB) trouxe para o centro da agenda pública a situação financeira do Rio Grande do Sul. Já nos primeiros atos, sob a defesa de que a antiga crise chegou a um limite, anunciou uma postura de extrema austeridade e determinou providências de contenção de despesas para lidar com um deficit estimado em nada menos que R$ 5,4 bilhões, sem falar no esgotamento do espaço fiscal e dos recursos externos. Cobrado de todos os lados por investimentos e obras, mantém a alegação de que o contexto exige cautela antes de assumir qualquer compromisso. Em pouco mais de três meses, não se viu declaração de Sartori que não fosse voltada à pauta das contas. Agora, tem a sua avaliação dividida entre os que julgam que está no caminho certo ao priorizar a busca pela estabilidade financeira e os que acusam o Estado de paralisia diante de demandas sociais.
Eleito com uma votação extraordinária (fez mais de 3,8 milhões de votos), Sartori já enfrentou desgastes ao suspender pagamentos de fornecedores, reduzir horas extras nas forças de segurança, represar repasses para hospitais e admitir a possibilidade de atraso em salários do funcionalismo e de extinção ou privatização de autarquias e estatais. Apesar disso, o governo não desviou o passo e mantém o discurso de que fará o que é preciso ser feito, a despeito da pressão que possa (e deve) sofrer.
Uma das dúvidas é até que ponto Sartori se sustentará politicamente com receitas impopulares. Para o cientista político Rodrigo Giacomet, o grande desafio do governo é convencer a população de que a crise financeira precisa ser superada. “O problema das contas públicas parece ser muito distante do cidadão, quando na verdade ele pode ser visto na primeira esquina”, colocou.
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De acordo com o também cientista político Paulo Moura, que é professor da Ulbra, as ações do governo para equilibrar as contas são “inevitáveis”. “Sem dinheiro, não existe serviço público”, argumentou. Na sua avaliação, no entanto, cortes de custeio têm efeito apenas paliativo e não há saída real para o drama sem soluções estruturais, como o estancamento da sangria da previdência e da folha salarial. Se isso não acontecer, continua ele, em algum momento o atendimento à população será afetado, o que implicará em perda de apoio por parte do governador. “Acho até que o Sartori está muito tímido e lento. Ou se parte para medidas estruturais ou certamente ele vai sofrer desgaste sem resolver o problema.”
Estudioso das finanças públicas do Estado, o economista Darcy Carvalho dos Santos, autor do livro O Rio Grande Tem Saída?, tem opinião semelhante. No seu entender, as medidas são “corretas e profundas”, mas insuficientes para acabar com o furo. Por outro lado, ele reconhece que medidas estruturais, como uma reforma previdenciária, dependem de uma intervenção em nível nacional, o que foge ao alcance imediato do governo. “Nunca o Estado esteve em uma situação tão difícil”, observou. Santos concorda que uma necessidade imperiosa para Sartori no momento é sensibilizar a população para o problema para poder prosseguir com a política de recuperação. “Ele tem que mostrar o problema para o povo. Senão vai acabar levando a culpa pelo problema por não ter falado”, concluiu.
Risco é perder legitimidade
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Em contrapartida, o fato de investimentos e melhorias no serviço público não estarem em primeiro plano para o governo também causa preocupação. Cientista político e professor da Unisinos e ESPM-Sul, Bruno Lima Rocha acredita que, no momento em que medidas de austeridade afetam o atendimento à população (como, por exemplo, nos cortes de horas extras da Brigada Militar), cria-se o risco de uma “crise política permanente” e de se estabelecer uma “sensação de abandono” na sociedade, o que para Sartori pode representar (e já estaria representando) queima de capital político. “A população não vive no médio prazo, vive no hoje, e quer ser bem assistida. Quando um governo não atende sequer as demandas do Estado mínimo, sua legitimidade se esgota com muita facilidade. E é bem possível que isso aconteça”, alertou.
Na avaliação de Rocha, a situação de Sartori é semelhante à enfrentada pela presidente Dilma Rousseff no plano nacional. Para ele, trata-se de um “abalo de legitimidade”. “A agenda da situação financeira não pode ser a agenda central de um governo, porque aí você está delegando para a técnica o que é da política”, asseverou.
Para a oposição, o governo apenas aponta problemas e está inerte. O deputado estadual Valdeci Oliveira (PT), que foi líder do governo Tarso Genro na Assembleia, acusa Sartori de até agora não ter apresentado uma ação sequer. “É uma questão de concepção. Ou tu governa só olhando receita e despesa, e aí não faz nada mesmo, ou tu cria condições para sair da crise. Sabemos há 35 anos que o Estado tem problemas”, opinou.
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GAZETA ENTREVISTA
Márcio Biolchi/ Chefe da Casa Civil do Estado
Gazeta – A situação financeira do Estado é mais grave do que vocês esperavam antes de assumir o governo?
Biolchi – É mais grave do que tivemos acesso durante a transição. Na época fomos informados, por exemplo, que os restos a pagar seriam de R$ 700 milhões, mas eles chegam a mais de R$ 1 bilhão. A receita que estamos registrando é inferior ao que estava projetado no orçamento, enquanto as despesas são maiores. Mas não culpamos o governo anterior pela crise, é um problema que vem de décadas. O que precisamos agora é fazer as pessoas entenderem o quadro, não como uma retórica para proteger o governo, mas no sentido de que o governo não pode ajudar a piorar essa situação.
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Gazeta – Como o senhor avalia os primeiros 100 dias de governo?
Biolchi – Foram, sim, dias pesados. Mas não mais do que os que virão. Porém, é preciso dizer que a agenda do governo não se limita aos cortes. Apresentamos hoje (sexta-feira) um material com 89 ações que foram realizadas em todas as áreas. Na Saúde, por exemplo, apesar de todas as dificuldades, investimos R$ 496 milhões, 14% a mais do que foi investido no mesmo período do ano passado. Então, a agenda da situação financeira não é simplesmente para equilibrar as contas e sim para alcançar os serviços à população.
Gazeta – Por enquanto, o senhor acha que a população está compreendendo ou o governo terá que mudar a sua forma de se comunicar?
Biolchi – Acreditamos que parte da população é compreensiva. Outra é mais vulnerável porque depende mais do atendimento do Estado. Mas a nossa preocupação não é com a comunicação, é com o serviço. O foco não tem que ser a preservação da imagem do governo e sim a preservação do serviço.
Gazeta – Um dos principais temores é que a crise leve ao parcelamento de salários do funcionalismo, como já se ventilou. Isso ainda pode acontecer?
Biolchi – Em janeiro, prevíamos o parcelamento para março. Conseguimos passar e já estamos em abril com tudo em dia. Mas até onde vamos conseguir mitigar esse buraco, só o dia a dia vai nos mostrar. Não temos como fazer essa previsão a longo prazo. É inevitável que vamos nos deparar em algum momento com problema de caixa. Para qualquer pessoa que tem acesso aos dados, fica muito claro o tamanho desse rombo. Por isso começamos a agir. No decorrer de 2015, pretendemos conseguir reduzir as despesas em mais de R$ 500 milhões.
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Gazeta – Comenta-se que o governo estudaria privatizar ou até extinguir autarquias, estatais e órgãos para reduzir despesas.
Biolchi – O que se quer é que cada setor, seja da administração direta ou indireta, não traga prejuízo. Isso não significa que vamos vender ativos, significa que estamos preocupados com que esses órgãos tragam resultados para a comunidade. Se deixarmos de observar isso, daqui a pouco estaremos com esqueletos no armário.
Gazeta – O senhor admitiu que os primeiros 100 dias foram difíceis. Pela projeção de vocês, quando a situação vai melhorar?
Biolchi – Pela nossa projeção, a situação das finanças é tão comprometedora que vai chegar o momento em que vamos sentir saudades desses 100 dias. A situação hoje é mais difícil do que há um ano. Daqui a um ano, pode estar mais difícil. É um quadro tão caótico que não existe uma única ação que possa resolvê-lo. Pode apenas amenizá-lo.
Gazeta – Apesar da crise, todas as regiões possuem muitas demandas de obras e investimentos. Aqui no Vale do Rio Pardo, por exemplo, são inúmeras. O governo teme que a dificuldade em atender a essas demandas gere desgaste ante à população, considerando que Sartori foi eleito com amplo apoio?
Biolchi – Pode sim, mas não vamos trocar a preservação política do governo pelo comprometimento das finanças e do atendimento à população. Esse governo prefere se desgastar do que piorar a situação do Estado. Talvez tenha sido na busca pela preservação política que deixamos de fazer muitas coisas no passado. Não podemos mais nos omitir, mesmo que para isso tenhamos que receber críticas e questionamentos.
Gazeta – O Estado espera algum auxílio ou intervenção do governo federal para driblar a crise?
Biolchi – Temos feito essa interlocução sem expor o governo e muitas vezes até emprestando apoio, porque entendemos que devemos manter uma relação republicana. Temos que fazer isso com responsabilidade, respeitando as dificuldades financeiras e políticas pelas quais o governo federal vem passando. O Estado merece um auxílio, mas não vamos jogar os nossos problemas para Brasília, até porque esse é um contexto nacional. São 13 ou 14 estados que estão nessa situação, não é só o Rio Grande do Sul.
Gazeta – O governador já assinou dois decretos de contenção de gastos. Outras medidas podem vir no curto prazo?
Biolchi – Essa semana levamos quase uma dezena de projetos à Assembleia, todos necessários. Outros projetos e decretos podem vir sim, nessa mesma esteira. Mas não estamos fazendo um debate público para pressionar a Assembleia, as entidades ou os servidores. Estamos convencidos de que precisamos conduzir o governo de forma diferente, senão as coisas não vão melhorar.
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