Reconhecida pela produção, beneficiamento e exportação de tabaco de altíssima qualidade, o que faz do Brasil líder mundial nas exportações há 20 anos, Santa Cruz do Sul é também um importante polo em outros segmentos da indústria, como vestuário, alimentação e bebidas, metalomecânico, borracha e brinquedos. Produtos que marcam a infância (Xalingo), a vida escolar (Mercur) e os momentos de lazer (Mor) de milhares de pessoas são produzidos no município.
Mas até chegar às linhas de produção, desde uma simples borracha escolar até uma nova cerveja, bolacha ou alimento congelado, eles precisam percorrer o longo caminho da criação. E os laboratórios das principais indústrias guardam uma Santa Cruz pouco conhecida do grande público, que mistura experiência de mercado, técnicas inovadoras e pesquisas minuciosas que vão da matéria-prima aos hábito de consumo.
O resultado são produtos consumidos por clientes de diferentes regiões do Brasil e até de fora dele, tudo desenvolvido nos laboratórios de empresas instaladas no município. Juntas elas empregam pelo menos 11 mil pessoas. Para fazer esta reportagem, a Gazeta do Sul visitou algumas das mais tradicionais indústrias locais e teve acesso a lugares e pessoas responsáveis pela criação de itens made in Santa Cruz.
Publicidade
Quem vê uma calça jeans da Pitt em uma vitrine nem desconfia de todo o processo necessário até a peça chegar ali. O desenvolvimento dura o tempo de uma gestação, e o planejamento é feito um ano antes do lançamento de uma coleção. “Nós realizamos pesquisas de tendências, visitamos grandes centros da moda mundial, fornecedores e coletamos informações. Esse material torna-se a base para o desenvolvimento de um produto novo”, revela o gerente de produção e varejo, Luís Braun. A Pitt fabrica 1,3 milhão de peças de roupas por ano e cerca de 70% são calças jeans. Uma pequena parte é exportada para países da América Latina. Depois do Brasil, o Paraguai é o maior mercado da empresa.
Custo e qualidade são os dois parâmetros mais importantes. A roupa que atende ao perfil consumidor da marca não pode ser cara demais, ao mesmo tempo em que deve se destacar pela qualidade. “A defesa de um produto novo é semelhante a uma banca examinadora. O preço de venda precisa ser pontuado. Mas nenhuma boa ideia é descartada por causa do preço. A tarefa é viabilizar a produção, reduzindo o custo”, explica o gerente comercial da Pitt, Paulo Kern.
Projeto aprovado na banca, processos ajustados ao preço e qualidade, o produto segue para a fabricação em escala. Segundo o gerente industrial e de marketing, Eduardo Simon, toda a produção começa em uma célula de costura na sede, em Santa Cruz. O sistema da Pitt consiste em criar protótipos com uso de alta tecnologia, testá-los e desenvolver uma metodologia de costura para cada uma das peças da coleção.
Publicidade
Nessa etapa, trabalham algumas das mais experientes costureiras da empresa. Depois, as peças vão para 30 oficinas de costura espalhadas por Santa Catarina e outras cinco em Santa Cruz do Sul. “Aí são feitos processos de acabamento em costura e lavagem. Essa etapa da produção é monitorada de perto por supervisores, que acompanham tudo. Depois é feito um controle de qualidade antes de as peças irem para o estoque”, explica Simon.
No mercado desde abril de 2010, as cervejas artesanais da Heilige fazem parte do rol de sabores de um grande laboratório de desenvolvimento montado pela própria empresa na cidade. Os produtos passam também pelo crivo do mercado nos pubs da marca em Santa Cruz, Lajeado e Porto Alegre. Apesar de jovem, a Heilige coleciona importantes prêmios na América Latina. Atualmente, os 21 estilos da cerveja artesanal santa-cruzense são vendidos em 30 redes de varejo de 17 estados brasileiros.
O diretor comercial, Ivan Oliveira, explica que o processo de fazer cerveja sofre a interferência pessoal do fabricante, da aceitação do público e da receita, seguida à risca. “Existe uma regra geral para cerveja. É um produto que, para ser caracterizado assim, precisa ter os mesmos ingredientes em qualquer parte do mundo. O segredo está na composição, no sabor alcançado nos tanques de fabricação”, explica.
Publicidade
Com maquinário europeu, a marca pesquisa receitas o tempo todo. Importa ingredientes de grandes empórios cervejeiros e monitora diariamente cada estágio de fabricação. Dependendo do tipo de cerveja, o tempo de produção se altera. Para fazer a pilsen são necessários 21 dias. “Quando o produto é bem aceito nos pubs, é sinal de que estamos no caminho certo. Nós promovemos a experiência como produto, com visitações à fábrica, participação em eventos e na venda direta.”
Na década de 1980, a Xalingo já era uma indústria quarentona quando percebeu que o elixir da juventude eterna estaria na fabricação, em larga escala, de brinquedos e jogos educativos. Madeira, plástico e agora atrações que mesclam o mundo material com o ambiente virtual de jogos eletrônicos estão entre os mais de 650 produtos fabricados na unidade santa-cruzense, que figura entre as dez maiores fábricas de brinquedos do Brasil.
De acordo com o diretor de operações, João Ebert, o segmento de brinquedos responde por 80% da produção – o restante é voltado ao setor de implementos agrícolas. “Nossa produção de brinquedos se concentra mais no segundo semestre. Por isso incorporamos a linha agro, para manter a atividade o ano todo.” Para agradar aos baixinhos, a Xalingo investe em pesquisa, compra de licenças de grandes personagens e se mantém de olho nas tendências de mercado. “A geração que consome brinquedos hoje é a chamada Alfa. Essas crianças buscam experiência com o conteúdo do brinquedo, que compete com atrações digitais”, detalha Ebert.
Publicidade
Por conta disso, a Xalingo se tornou pioneira no Brasil ao ofertar jogos que têm conteúdo extra no meio digital. “O jogo ganha continuidade na tela do celular. Essa interação é uma tendência. O público é jovem, com uma mentalidade igualmente nova.” O diretor diz que os jogos virtuais começaram a ser incorporados ao catálogo há três anos, por meio de aplicativos que a Xalingo terceiriza.
No mercado há 125 anos, a marca Excelsior utiliza modernas ferramentas no desenvolvimento e teste de produtos. “Nós realizamos todos os testes na fábrica para chegar na composição técnica, de sabor e qualidade e, em seguida, lançamos em uma determinada praça. Nós recebemos a resposta do consumidor, que aprova ou não, ajusta a composição e determina se lançaremos o produto no mercado nacional”, resume o gerente de pesquisa e qualidade, Fernando Bohn. Segundo ele, as respostas de pequenos grupos de consumidores são avaliadas antes que uma novidade seja lançada em escala.
Mas para que um item novo entre na fase de testes, por meio da metodologia chamada de cauda longa, ou mesmo para que os patês, salames e fatiados tradicionais cheguem ao supermercado, é preciso antes um processo de produção que tem na análise laboratorial e testes frequentes de qualidade os passos fundamentais. São pelo menos cinco procedimentos que testam a matéria-prima, o cozimento, o embalamento, o encaixotamento e a verificação laboratorial de amostras dos produtos.
Publicidade
Nos próximos meses, a empresa pretende lançar 17 itens que se somarão ao catálogo, que já chega a uma centena. E as novidades já estão em testes. Por dia, a fábrica localizada em Santa Cruz processa 95 toneladas de alimentos.
Há cinco décadas, a Mor era uma indústria de implementos agrícolas focada em atender às necessidades da produção rural. Mas foi mudando o foco e hoje é referência em diferentes segmentos, em especial o de lazer. Durante muito tempo, a metalúrgica de Santa Cruz pensou seu produto de forma linear: criação, produção e venda. Porém, o consumo mudou e a empresa evoluiu.
Júlia Carla Backes é diretora da Mor. Formada em cinema, com especialização na área da produção, é uma das responsáveis pelo catálogo de mais de 2 mil produtos fabricados em Santa Cruz e numa pequena unidade de São Paulo, que juntas respondem por um faturamento anual de R$ 900 milhões. “É preciso ver não quem está comprando, mas quando está comprando.
Ninguém mais aceita ser categorizado, ninguém mais se define, o consumo segue essa lógica agora”, avalia. Para entender esse comportamento, a Mor investe em tecnologia da informação. Durante o ano, foram R$ 4 milhões em programas de computador para deixar os processos alinhados com o que o mercado espera. A inteligência artificial que ajuda a calcular novas formas de agradar ao consumidor também é a responsável por tornar eficiente todo o processo de fabricação.
A empresa funciona hoje em duas grandes áreas: casa e lazer. A tradicional cadeira de praia é o produto principal: são 7 milhões de peças. “São Paulo, Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro são nossos principais mercados. O Rio de Janeiro consome muito, os fluminenses, conhecidos pelo lazer mais acessível, são grandes compradores da Mor”, observa Julia. O preço, além da qualidade e do design, é prioritário na definição de novos itens. “Um produto só vai para o mercado se couber no bolso do consumidor. Nós nunca teremos o preço mais baixo, pois não colocamos nossa marca em algo de qualidade inferior. No entanto, perseguimos o custo o tempo todo”, afirma o vice-presidente financeiro, Valmor André Konzen.
Uma das mais tradicionais indústrias de Santa Cruz, há pouco mais de uma década a Mercur passou por um processo de horizontalização da gestão e produção. Foi aí que nasceu o Lab Mercur, onde os novos produtos são planejados, testados, validados e encaminhados para fabricação em série.
“Existia um problema com o giz de cera. Os professores derretiam o produto e criavam barras maiores, em formatos diferentes, que auxiliavam no uso em sala de aula e aumentavam a durabilidade dele”, conta a pedagoga Márcia Murillo. Para acertar a forma do giz, a Mercur recriou seu processo de fabricação. Criou um laboratório social de experimentos e até chamou consumidores. “Nós chamamos isso de mapa de cocriação. As pessoas ajudam a criar, dar forma e utilidade às soluções industriais”, explica a colaboradora Silda Santos.
Giz acessível, tinta têmpera com bico dosador e adaptadores de borracha que ajudam em tarefas simples, como escovar os dentes, tornaram-se itens de patente aberta. A Mercur desenvolve, fabrica e vende, mas não detém o direito sobre as criações feitas de forma compartilhada. O catálogo tem hoje mais de 900 produtos, divididos nos segmentos de saúde e educação. Por meio do projeto Diversidade na Rua, no qual a disponibiliza as soluções criadas a partir do teste e validação com consumidores, a Mercur mantém uma loja virtual para venda direta.
Com mais de cem anos de história na produção de massas e biscoitos, a Germani Alimentos diz ter o desafio de produzir em escala industrial os sabores das mais tradicionais receitas caseiras. Conforme o diretor industrial, Carlos Adriano Fissel Ferrugem, a pesquisa em laboratório é o início do processo de desenvolvimento. “O maior desafio está na formulação da receita mesmo. São realizados demorados testes, ancorados em pesquisa. A criação de um novo produto é repetida até que se alcance a fórmula ideal, mantendo o sabor original”, explica.
Para chegar ao sabor desejado, a Germani produz e convida consumidores para provar suas delícias. Novidade aprovada, vem outra preocupação: a embalagem. “É uma das fases mais desafiadoras, pois o produto é sensível. Antes mesmo de autorizarmos sua produção, é necessário pesquisar de que forma iremos entregá-lo ao consumidor”, diz Ferrugem.
A marca, que integra um grupo sul-mato-grossense, foca no sabor caseiro. Faz ajustes em suas linhas para ser reconhecida como o sabor da cozinha de Santa Cruz e, para isso, planeja um superlançamento de produtos. Até o fim do verão de 2019, 40 novos itens serão colocados no mercado. “Percebemos na vocação santa-cruzense um meio de produzir um produto totalmente novo, com sabor diferenciado. Contamos com profissionais de diferentes áreas, como engenheiros e químicos, mas também com aqueles que conhecem o sabor de Santa Cruz.”
A Germani vivencia um novo momento, focado no consumo dos gaúchos. Diferente de outras partes do Brasil, o Rio Grande do Sul aprecia receitas artesanais de biscoitos. De olho nessa fatia do mercado, a reinvenção dos sabores da culinária regional faz parte do novo posicionamento da empresa. “Nossa meta é assumir a liderança na fabricação desses produtos diferenciados. O dia em que chegamos a Santa Cruz percebemos que aqui teríamos o potencial de desenvolvimento dos sabores que serão lançados agora.”
This website uses cookies.