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Régis de Oliveira Júnior: “Agiotagem algorítmica – por que o Estado se tornou sócio das bets”

Enquanto o governo comemora a arrecadação bilionária gerada pelas apostas online, a geladeira de milhões de famílias brasileiras esvazia. Em 2025, as bets deixaram definitivamente de ser uma forma de jogo ou entretenimento. 

Tornaram-se um mecanismo de expropriação de renda, no qual a dignidade do cidadão financia lucros concentrados em grandes corporações de dados, muitas delas sediadas fora do país. O Estado, ao tributar esse modelo sem impor travas eficazes, deixou de ser árbitro e passou a ocupar o papel de sócio indireto do vício, omitindo-se diante de um dinheiro que deveria estar no prato de comida.

Os beneficiários do Bolsa Família transferiram R$ 3 bilhões às empresas de apostas, conhecidas como “bets”, por meio de Pix em agosto deste ano. A informação consta em um relatório do Banco Central ao qual a CNN teve acesso.   

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De acordo com o documento, a média gasta pelos beneficiários do programa social com as apostas no período foi de R$ 100,00. Dos apostadores, 4 milhões (70%) são chefes de família (quem de fato recebe o benefício) e enviaram R$ 2 bilhões (67%) por Pix para as bets.

Os números não permitem mais eufemismos. O gasto médio semestral de R$ 983,00 por apostador ativo equivale a cerca de 70% do salário mínimo vigente. Isso não é lazer digital nem decisão racional de consumo. Trata-se de uma tentativa desesperada de complementar renda em um ambiente matematicamente desenhado para a perda. 

Em 2025, a Confederação Nacional do Comércio (CNC) estimou que o varejo e o setor de serviços deixaram de movimentar R$ 115 bilhões, recursos que antes sustentavam empregos formais e agora alimentam plataformas com baixíssima capacidade de geração de trabalho local.

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Esse dinheiro não se perde por acaso. Ele é capturado por um modelo de predação algorítmica. As casas de apostas operam sistemas de IA que não apenas reagem ao comportamento do usuário, mas exploram suas fragilidades. 

Quando o Estado arrecada sem proteger, a tecnologia deixa de inovar e passa a explorar. Alguns algoritmos são desenhados para explorar fragilidades emocionais, a omissão regulatória deixa de ser técnica e passa a ser escolha política.

Quando o jogador perde, a máquina responde com bônus direcionados, geralmente em horários de maior vulnerabilidade emocional, como a madrugada. A tecnologia identifica o desespero de quem tenta recuperar o que perdeu e explora esse estado psicológico de forma sistemática. Não é interação neutra. É a engenharia de estímulos voltada à compulsão, que transforma sofrimento em receita recorrente.

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As consequências sociais já transbordaram para além das estatísticas econômicas. Em 2025, os registros de divórcios associados à ruína financeira provocada por apostas cresceram 30% em relação a 2023. A inadimplência vinculada diretamente ao jogo alimentou uma crise silenciosa de saúde mental. O Sistema Único de Saúde (SUS) registrou aumento de 40% na busca por tratamento de transtornos de impulsividade ligados a jogos digitais. O impacto não é abstrato. Ele aparece em lares desfeitos, em crianças expostas à insegurança material e em serviços públicos pressionados.

Diante desse cenário, a postura estatal torna-se insustentável sob qualquer ótica ética. Não existe imposto legítimo sobre a ruína alheia. Em 2025, as casas de apostas lucraram cerca de R$ 40 bilhões líquidos no Brasil, enquanto o governo arrecadou aproximadamente R$ 12 bilhões em tributos. 

Para cada real que entrou nos cofres públicos, o cidadão perdeu três para o algoritmo. A agilidade do Ministério da Fazenda para estruturar a arrecadação contrasta com a lentidão em implementar barreiras tecnológicas efetivas. Não se trata de incapacidade. Trata-se de escolha política. O caixa cheio foi priorizado em detrimento da dignidade material das famílias.

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A regulação que autorizou 189 plataformas criou um verniz de controle, mas falhou no essencial. Trata-se de um teatro de conformidade. A IA precisa ser reposicionada como instrumento de contenção, por meio do nudging digital positivo. 

Alertas objetivos, pausas obrigatórias e limites automáticos devem informar, em tempo real, quando uma parcela relevante da renda é consumida em poucas horas. Essas medidas não eliminam a liberdade individual. Elas introduzem racionalidade em um ambiente deliberadamente construído para suprimir o autocontrole.

Esse sistema de proteção não pode permanecer sob domínio das próprias operadoras. Sandboxes regulatórios com auditoria externa obrigatória devem funcionar como inspeção técnica de software. Algoritmos que afetam diretamente a saúde financeira da população precisam ser testados, certificados e, se necessário, impedidos de operar. A transparência algorítmica, baseada em princípios de IA explicável, exige que o setor de apostas seja tratado como atividade de alto risco, com elevado nível de governança.

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No sistema de pagamentos, a omissão é ainda mais grave. O Banco Central do Brasil (BCB) dispõe de tecnologia para monitorar fluxos financeiros em tempo real. A mesma infraestrutura capaz de rastrear operações suspeitas para combater lavagem de dinheiro não pode alegar incapacidade técnica para conter o dreno de renda popular para o cassino digital, sem que isso soe como conivência deliberada. 

O chamado Pix Seguro-Bets, com travas algorítmicas que impeçam transferências atípicas para apostas, especialmente quando envolvem benefícios sociais ou padrões incompatíveis com a renda do usuário, não é alternativa opcional. É dever institucional de quem controla o sistema de pagamentos.

A publicidade completa o ciclo da predação. Influenciadores que vendem o mito do “algoritmo vencedor” praticam um estelionato emocional contra uma população vulnerável, prometendo atalhos financeiros inexistentes. Setenta por cento dos apostadores de baixa renda relatam ter ingressado nas bets por recomendação desses perfis. Ignorar esse vetor equivale a normalizar uma fraude social em escala industrial. A IA deve ser empregada para identificar e coibir publicidade abusiva, protegendo o consumidor em um ambiente profundamente assimétrico.

O debate chegou ao limite do tolerável. Não basta regulamentar as apostas. É necessário classificar os algoritmos de jogo como Inteligência Artificial de Alto Risco, no âmbito do Marco Legal da Inteligência Artificial no Brasil, impondo responsabilidade civil objetiva às plataformas por danos financeiros sistêmicos. Ou o Estado reprograma a tecnologia para proteger o cidadão, ou seguirá cúmplice da maior transferência regressiva de renda da história recente do país.

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Carina Weber

Carina Hörbe Weber, de 37 anos, é natural de Cachoeira do Sul. É formada em Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) e mestre em Desenvolvimento Regional pela mesma instituição. Iniciou carreira profissional em Cachoeira do Sul com experiência em assessoria de comunicação em um clube da cidade e na produção e apresentação de programas em emissora de rádio local, durante a graduação. Após formada, se dedicou à Academia por dois anos em curso de Mestrado como bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Teve a oportunidade de exercitar a docência em estágio proporcionado pelo curso. Após a conclusão do Mestrado retornou ao mercado de trabalho. Por dez anos atuou como assessora de comunicação em uma organização sindical. No ofício desempenhou várias funções, dentre elas: produção de textos, apresentação e produção de programa de rádio, produção de textos e alimentação de conteúdo de site institucional, protocolos e comunicação interna. Há dois anos trabalha como repórter multimídia na Gazeta Grupo de Comunicações, tendo a oportunidade de produzir e apresentar programa em vídeo diário.

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