Kothe: “Traduzi O perfume na casa de meus pais, em Santa Cruz, em menos de um mês”
Há exatos 40 anos, em 1985, um romance espalhou-se como um aroma irresistível no mundo todo. Sugestivamente, atraía leitores a partir do próprio título. O perfume, escrito pelo alemão Patrick Süskind, em questão de semanas, ou meses, foi traduzido para dezenas de línguas. E foi um santa-cruzense, o professor e escritor Flávio René Kothe, o responsável por versar o texto do original para o português, em edição brasileira lançada pela editora Record, naquele mesmo ano.
A exemplo do que acontecia em outros países, foi sucesso imediato. A mesma tradução atualmente está nas livrarias na 34a edição, o que constitui um dos maiores feitos de uma obra estrangeira no mercado nacional. E um detalhe é significativo para o ambiente artístico regional: a tradução de O perfume foi feita em Santa Cruz do Sul.
LEIA TAMBÉM: José Castello: “Habitamos hoje um grande deserto”
Publicidade
Em vias de completar seus 40 anos, e com ampla formação dentro e fora do País, Kothe estava, por aquela época, dedicando-se à tradução. Entre 1983 e 1985, atuou em equipe encarregada de versar um clássico da filosofia e das ciências políticas, O Capital, de Karl Marx. Sob supervisão de Paul Singer, e em parceria com Regis Barbosa, assinou tradução que se tornou clássica. Atualmente, nova edição, revista por Kothe, chegou às livrarias pela editora Ubu.
E então aceitou a incumbência de traduzir O perfume. Para isso, fixou-se por uma temporada na casa de seus pais, na Rua Gaspar Silveira Martins, em Santa Cruz. Ali, à sombra de uma pereira, no pátio aos fundos da residência, mergulhou intensivamente na narrativa ficcional de Süskind. O resultado foi uma obra que, quatro décadas depois, segue cativando os leitores brasileiros.
Não seria desafio pouco, para um tradutor, adaptar para o português os inúmeros termos técnicos, em sua maioria da química, que dão verossimilhança ao enredo de O perfume. Mas Flávio Kothe estava plenamente preparado para tal empreitada. Como leitor, e como estudioso.
Publicidade
Formado em Português e Inglês, Língua e Literaturas, pela Ufrgs, em 1968, no mesmo ano estudou Política em Ciências Sociais e em Direito e Ciência Política, na mesma instituição. Depois fez mestrado em Teoria Literária na Freie Universitat Berlin, na Alemanha, em 1972. Doutorou-se em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo, em 1975. E fez pós em Yale, Heidelberg, Berlim, Konstanz, Bonn e Frankfurt. Hoje, professor aposentado de Estética na Universidade de Brasília, segue radicado na capital federal. Em paralelo, ele publicou ampla obra, em variados gêneros.
O subtítulo do romance O perfume sinaliza para enredo de investigação, ou de aventura: “A história de um assassino” paira como pano de fundo para peripécias de época, ambientadas na Paris do século 17, bem antes da Revolução Francesa e da mudança radical de costumes firmemente arraigados ao longo de toda a Idade Média.
É numa cidade marcada pelo embate entre a tradição medieval e os ares renascentistas que vem ao mundo um menininho, Jean-Baptiste Grenouille, parido em meio a peixes sendo eviscerados em um sujo mercado público. Mal nasce e já será órfão. Nesse ambiente, nada sugeriria uma carreira marcante, mas os acasos fazem com que seja acolhido por diferentes pessoas. Até que, já na adolescência, é empregado em um curtume, e a partir dali tem acesso a uma loja de perfumes situada em uma das pontes sobre o Sena, junto à Ile de la Cité, a ilha em meio ao rio.
Publicidade
O que o levou até ali foi o nariz. Ocorre que Grenouille demonstra ter um faro raro, raríssimo, uma capacidade incomum de apreciar, assimilar e separar os mais diversos aromas, bons ou ruins. E, no entanto, ele próprio não emite cheiro algum. Acolhido por um perfumista, Baldini, ajuda-o a tornar-se o mais renomado de todos.
LEIA TAMBÉM: Luciana Deretti lança “Invencível”, livro que marca sua estreia como autora
Mas sua ambição é outra: encontrar uma forma de sistematizar os perfumes que idealiza e alimenta dentro de si. E, para tanto, buscará apreender tudo o que será necessário, em termos de técnicas ou de processos, para alcançar seu intento: captar a essência do humano em um aroma, talvez até um que seja sobre-humano.
Publicidade
O livro estrutura-se em quatro partes: na primeira, narra-se a formação olfativa de Grenouille; na segunda, ele se afasta da civilização, isolando-se em uma erma montanha; na terceira, retorna à civilização, com gana renovada; na última parte, tem-se breve síntese do que é feito dele.
O perfume: a história de um assassino, de Patrick Süskind. Tradução de Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Record, 2022. 34a edição. 265 p. R$ 69,90.
O alemão Patrick Süskind tinha cerca de 35 anos quando lançou o romance O perfume, em 1985. Tanto o livro quanto o autor foram projetados em escala global, da noite para o dia. O livro foi aclamado como obra-prima contemporânea. Depois dele, o escritor pouco publicou.
Publicidade
Ainda antes, em 1981, lançara um monólogo, O contrabaixo, ao qual o professor, escritor e tradutor santa-cruzense Flávio René Kothe comenta ter assistido, durante a sua estada na Alemanha. Süskind, hoje com 76 anos, ainda publicou mais dois romances, disponíveis em edições no Brasil: A pomba, de 1987, na esteira do sucesso de O perfume; e A história do Senhor Sommer, em 1991.
LEIA TAMBÉM: Calçada da fama verde: Bosque do Festival é inaugurado em Santa Cruz
Mas, tirando um ensaio, Sobre o amor e a morte, de 2006, não mais se aventurou pela narrativa longa. Assinou, isso sim, argumentos para TV. Aliás, seu principal livro chegou a ser adaptado para o cinema, pelo diretor Tom Tykwer, em 2006, com o ator Ben Whishaw no papel de Grenouille.
Na avaliação de Kothe, O perfume corresponde ao perfil do leitor médio contemporâneo. “Ou seja, a obra faz sucesso por causa das limitações que lhe são inerentes. O leitor deveria perceber a falta de lógica nas ações do protagonista, dar-se conta de como é manipulado pela ficção, a ponto de ficar inebriado e se deixar levar”, diz.
“A obra estuda a diferença entre dom, talento reprodutivo e gênio criativo, conforme feito por Gérard e Kant no século 18, mas também como as mentes podem ser manipuladas por influências etéreas. Mostra como operações psicológicas exercem influência conforme os interesses de quem as controla.”
This website uses cookies.