Já contei esta história em outra ocasião, mas ela é tão adequada para os tempos de hoje que vou repetir. É um trecho de A trégua, livro do italiano Primo Levi (1919-1987). A obra conta sua jornada de volta para casa, em Turim, após ser libertado do campo de Auschwitz em 1945, onde ficara aprisionado durante 11 meses. A certa altura, Levi ouve esta recordação de Henek, um amigo que conhecera em suas andanças:
“Caminhava frequentemente com o pai pelo bosque no domingo, ambos com o fuzil. Por que com o fuzil? Para caçar? Sim, também para caçar; mas também para disparar contra os romenos. E por que disparar contra os romenos? Porque são romenos, explicou-me Henek, com simplicidade desarmante. Eles também, de vez em quando, disparavam contra nós.”
É um raciocínio que facilita bastante na hora de fazer mira. Você não precisa se perguntar o tempo inteiro se esse ou aquele merece ou não ser derrubado. Basta apontar na direção certa e pronto, qualquer coisa que se mexa daquele lado é um alvo, um inimigo. Nada de refletir demais, atormentar-se e perder tempo.
O contrário, sem dúvida, seria desagradável. Se você estivesse do lado oposto, mas desarmado e sem oferecer risco, nada além de um ponto no mapa, acharia absurdo ser alvo de tiros ou mísseis. Uma barbárie, uma violação dos seus direitos humanos. Como se pode eliminar uma pessoa só por viver em determinado território?
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Mas isso é porque, como dizia Nietzsche, estamos sempre alguns passos perto demais de nós mesmos e longe demais dos outros. Assim, é fácil ver esses outros como algo genérico, um coletivo sem individualidade relevante: “eles”. Quem? Eles são eles. Uma ameaça por si.
É o que se vê no Oriente Médio. A reação de Israel contra os crimes do Hamas foi mirar na população palestina. Se são terroristas ou não, pouco importa. Não existe hoje, na Palestina, individualidade digna de consideração.
Enquanto isso, o grupo de Netanyahu chama de “antissemitismo” qualquer acusação que lhe façam. Ou seja, a que ponto chegamos: precisamos dizer o óbvio, que criticar ações de um governo – só um governo entre muitos que o precederam e o sucederão – não significa condenar um país inteiro, muito menos uma civilização. Isso é uma falácia inacreditável.
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E também será um erro acreditar que todos os judeus são devotos de Netanyahu. Não são.
Entre mentiras, meias-verdades e insultos à inteligência de qualquer um, a guerra se espalha. Pois é justamente esse o seu combustível.
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