Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
Estampadas em camisas de futebol, saltando em anúncios nas redes sociais e em comerciais de televisão, explícitas em músicas que viram hinos de ostentação digital e romantizam os jogos, as casas de apostas em jogos online estão apelando com força para atrair cada vez mais apostadores.
A promessa do dinheiro fácil, as cores vibrantes e estimulantes, a falsa impressão de que se trata apenas de uma atividade de passatempo tornam as apostas cada vez mais frequentes e presentes na rotina de milhares de pessoas.
Ao parecerem inofensivas, escondem riscos a poucos toques na tela do celular. Ao alimentar o vício, famílias são afetadas e impactos são sentidos na economia e no mercado de trabalho, onde profissionais e empregados deixam de desempenhar as suas atividades para jogar.
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“Comecei a jogar em meados de 2023, era algo bem banal, jogava R$ 10,00, R$ 20,00 no fim do mês, quando recebia e acabava ganhando às vezes R$ 50,00. E parava, estava satisfeita. No meio do ano passado, comecei a jogar com mais frequência durante o trabalho, à noite, sempre que tinha um tempo.
Eu jogava mais o jogo do Aviator, mas também gostava de jogar o do Touro e do Tigrinho. Eu ganhava, mas perdia com muita frequência. Foi quando comecei a fazer empréstimos, pegar do cartão de crédito e usando limites do cartão do meu ex-namorado, o que se tornou uma bola de neve. Eu já estava endividada, meu ex também, e nunca era o suficiente.
Em dezembro, joguei uns R$ 6 mil e ganhei por volta de R$ 50 mil, mas perdi tudo jogando de novo e entrei em desespero, tentando recuperar o que perdi. Acabei pegando valores de outro lugar. Foi quando meus pais descobriram que eu jogava e fui demitida do meu serviço. Mas segui jogando.
Em março eu tive a primeira tentativa de suicídio, após perder no jogo. No início de abril, tive outra tentativa e fui parar no hospital. Então, fui orientada a procurar ajuda.
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No Caps, recebi suporte e me encaminharam para consulta com psiquiatra. Recebi medicamentos para que diminuísse minha compulsividade. Depois fui atrás de outra ajuda particular, quando contei tudo que estava acontecendo e sobre a minha constante vontade de morrer. Por isso, me internaram dia 8 de abril em um hospital psiquiátrico, onde fiquei internada por 42 dias, ganhando alta no dia 20 de maio.
Meus pais só voltaram a falar comigo quando fui internada. Hoje moro com eles, terminei meu relacionamento de sete anos por conta dos jogos, perdi todo o interesse de fazer algo. Quando eu estava jogando, não estudava, não comprava nada, não viajava; meu dinheiro ia todo para o jogo.
Eu não vou falar que é fácil. Depois que voltei do hospital, tive uma recaída, joguei uma única vez e fiquei desesperada quando perdi. Agora, faz um mês e meio que não jogo. Uso um aplicativo no celular que se chama Gamban, ele bloqueia o acesso em qualquer tipo de plataforma. Tenho no celular dos meus pais, do meu irmão e até no notebook, para não ter acesso a nada de jogos.
Faço acompanhamento com psiquiatra e psicóloga, tomo medicações (uma delas custa cerca de R$ 3 mil). Ainda não estou trabalhando, comecei a estudar faz duas semanas e nunca tenho dinheiro em conta, sempre físico. Tento evitar ao máximo ter dinheiro em banco, para não correr o risco de jogar.”
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Para o professor Wagner de Lara Machado, da escola de Ciências da Saúde e da Vida da PUCRS, o processo de dependência é inter-relação entre processos comportamentais, motivacionais e a bioquímica cerebral. “Jogos e apostas se situam no que chamamos de reforço intermitente. Isto é, ainda que rara, a recompensa tem muita força em motivar na busca por obter ganhos.” Segundo ele, as tentativas ativam o sistema cerebral de prazer e recompensa, aumentando os níveis de neurotransmissores, como a dopamina.
“Esses níveis excessivos levam a dois outros processos: aumentam a quantidade e a frequência das apostas para produzir os mesmos efeitos que os comportamentos iniciais já causavam; e interferem no funcionamento do córtex pré-frontal, responsável pelo sistema inibitório, ou seja, aquele que põe um freio no comportamento”, explica.
Esse processo, em especial em pessoas que já possuem vulnerabilidade diante da promessa de ganhos financeiros, gera um ciclo difícil de ser rompido. “Em termos de saúde pública, esses dispositivos deveriam ter alguma forma de controle e bloqueio quando o padrão dos usuários ultrapassa um certo limite considerado prejudicial ou de risco”, observa.
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O vereador Edson Azeredo (PL) trouxe o assunto à tona na Câmara de Vereadores, ao relatar diversas situações como pedidos de ajuda por dinheiro nos últimos 90 dias. Ao averiguar a causa, ele teve uma surpresa: tratava-se de pessoas que estavam se endividando porque usavam seus ganhos em apostas.
Um dos casos chamou sua atenção para a gravidade. Um amigo de 26 anos havia tirado a própria vida, depois que o pai vendera um terreno numa sexta-feira. Ao receber o depósito, o jovem, num fim de semana, gastou todo o valor em apostas.Ao se dar conta, não conseguiu explicar ao pai o que havia acontecido. Na quarta seguinte, ele se matou.
Ao levar o caso à tribuna, Azeredo contou que seu celular em poucas horas foi tomado por mais de 300 mensagens com relatos. Uma senhora de quase 80 anos, moradora do Bairro Ohland, estava desesperada porque, pela segunda vez consecutiva, o neto havia usado boa parte do salário de sua aposentadoria para fazer apostas em jogos.
Um pedreiro do Bairro Belvedere é acompanhado pela esposa às sextas-feiras, ao sair da obra onde trabalha, porque se estiver sozinho e resolver parar, aposta todo o dinheiro do trabalho da semana.
Em outro caso, um motorista de aplicativo se separou da esposa recentemente. Ao vender a casa, gastou a parte que lhe cabia em apostas. Isso fez com que hoje ele tenha que viver dentro do próprio carro.
A dona de uma pizzaria contou que tem nove motoboys. Destes, cinco pedem a ela que o dinheiro que garantiram com o trabalho no dia seja trocado por Pix. Ao verificar nas câmeras do estabelecimento, ela constata que eles ficam até de madrugada no local, em cima das motos, jogando todo o dinheiro que ganharam.
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Uma mãe, com guarda compartilhada, descobriu que o filho de 14 anos lhe pedia o dinheiro da merenda em Pix porque passou a jogar em cassino online, após aprender com o pai. Um jovem, entregador de uma papelaria na cidade, não pagou o IPVA do seu veículo e ainda vendeu seu celular e o microondas de casa para utilizar em apostas. Por isso, não conseguiu trabalhar o mês todo, já que não possuía mais suas principais ferramentas de trabalho.
Azeredo afirma que pedidos de ajuda e depoimentos semelhantes alertaram-no para a necessidade urgente de apoio a essas pessoas. “Estamos falando de uma nova dependência, não química, mas intelectual. Isso não tem classe social e idade. É preciso fazer uma desintoxicação do uso do celular.” Ressalta que não se trata de apostas esporádicas, e a situação se agrava pela facilidade de acesso.
“São plataformas que funcionam 24 horas por dia, com mecanismos que exploram a vulnerabilidade das pessoas. Antigamente, elas iam nos bingos, mas, depois que algumas horas passavam e a pessoa não chegava em casa, os familiares iam atrás ou ligavam. Hoje o vício está na palma da mão, em qualquer lugar, a qualquer hora. Algo sem limite.”
A compulsão por jogos de azar, também conhecida como ludopatia, é caracterizada por um desejo incontrolável de apostar. A Organização Mundial da Saúde (OMS) é crítica aos jogos online e reconhece que esse vício pode se converter em um problema de saúde pública. Dados apontam que, entre junho de 2023 e abril deste ano, o número de auxílios-doença concedidos mensalmente por ludopatia aumentou mais de 2.300% – foram 276 benefícios concedidos nesse período.
Em Santa Cruz do Sul, segundo o secretário municipal de Saúde, Rodrigo Rabuske, a demanda dos jogos online começa a ser gradativamente uma realidade dentro dos atendimentos em saúde mental do município. “Primeiramente, observamos que alguns pacientes ainda têm resistência em buscar ajuda, devido a razões internas e preconceitos, entre outros”, salienta Rabuske.
O médico psiquiatra do Caps no município, Rodrigo Deitos da Luz, frisa que a questão da classificação do apostador como algo patológico vem estabelecida desde definições diagnósticas mais antigas, tendo sido incorporada pelo atual sistema de classificação CID-11, com aprimoramentos. Ele enfatiza que nenhum caso é inofensivo. São situações que podem gerar riscos como perdas financeiras, dilapidação de patrimônio, perdas de laços sociais e familiares, marginalização e risco de suicídio. Por isso, demandam medidas de tratamento farmacológico, aconselhamento familiar, terapias individuais e em grupo, internação para proteção por exposição física e moral, medidas judiciais para proteção de patrimônio do envolvido, entre outras possibilidades. “As ações de tratamento desenvolvem-se de acordo com a análise de cada caso”, observa.
Luz acrescenta que, assim como o tratamento, a dependência de telas envolve comportamentos compulsivos e nocivos, principalmente na infância. Essa problemática vem sendo abordada em diferentes eventos dentro das respectivas sociedades profissionais e de saúde pública. “É muito importante ressaltar que o comportamento adictivo/compulsivo geralmente se dá em um contexto de comorbidades com outras dependências químicas ou outros transtornos psiquiátricos. Isso demanda atenção não apenas por causa dele, isoladamente, mas por riscos que essas outras patologias podem envolver, entre eles o suicídio”, adverte Rodrigo Deitos da Luz.
Em Santa Cruz, o secretário de Saúde enfatiza que a rede está preparada para o acolhimento da demanda dentro do seu (já estabelecido) modelo de atenção psicossocial, que inclui a disponibilidade do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD III Superação) para adultos, e do Caps IA para crianças e adolescentes. Esses serviços são referência para os casos complexos e graves. “À medida que chega ao serviço, a problemática tem sido atendida em acolhimentos diurnos e/ou noturnos, com atendimentos de enfermagem, psicologia, psiquiatria, serviço social, de forma individual ou em oficinas terapêuticas, conforme plano terapêutico singular”, diz Rodrigo Rabuske.
Para quem busca orientação, os contatos também podem ser feitos pelos canais oficiais da Câmara de Vereadores (3715 7100), ou através das redes sociais. Além disso, a Câmara e o Executivo estudam uma medida complementar. “Estamos tentando achar um lugar onde essas pessoas possam fazer uma desintoxicação de 30 dias”, afirma o vereador Edson Azeredo.
Um estudo da Confederação Nacional do Comércio (CNC) estima que, só em 2024, o setor varejista perdeu R$ 109 bilhões devido às apostas. A partir de dados do Banco Central, os brasileiros destinaram cerca de R$ 240 bilhões às bets no ano passado. Segundo estimativas, no último ano, cerca de 1,8 milhão de brasileiros entraram em situação de inadimplência por causa das bets e dos cassinos online.
No primeiro semestre do ano passado, 24 milhões de pessoas participaram de apostas online em todo o País, fazendo transferências regulares de valores via Pix. Desse contingente, 8,9 milhões de usuários são beneficiários do programa Bolsa Família, e movimentaram mais de R$ 10,5 bilhões em transferências.
Os cassinos físicos foram proibidos no Brasil em 1946, durante o governo de Eurico Gaspar Dutra. Na época, alegou-se que os jogos de azar eram contrários à tradição moral, jurídica e religiosa do povo brasileiro.
A atuação das bets no Brasil foi autorizada pela lei federal 13.756, aprovada em 2018. No Brasil, o ministério da Fazenda aceita jogos que possuem certificações internacionais — esse é o caso do Jogo do Tigrinho.
Jogo do Tigrinho, ou Fortune Tiger, é um jogo de caça-níquel para celulares. Para jogá-lo, é preciso entrar em uma casa de apostas (as chamadas “bets”) que o ofereça. No Brasil, isso era ilegal até dezembro de 2023. Os jogos em máquinas de caça-níquel seguem proibidos por lei, mas os jogos de caça-níquel para celular foram liberados pela lei 14.790 de dezembro de 2023.
A empresa de softwares PG Soft, empresa criadora do Fortune Tiger, em 2016, está sediada em Malta, no sul da Europa, espécie de “Vale do Silício” da indústria de jogos de azar. No longo prazo, os jogadores sempre sairão perdendo. O próprio Fortune Tiger divulga que seu retorno ao jogador (RTP, na sigla em inglês) é de 96,81%. Isso significa que, no longo prazo, quem jogar o Fortune Tiger por muito tempo tende a receber apenas R$ 96,81 para cada R$ 100 apostados.
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