Santa Cruz do Sul

Educação vive uma nova fase após a restrição de celulares

Com os avanços tecnológicos dos últimos anos, os celulares deixaram de ser apenas um aparelho telefônico para se transformarem em uma ferramenta imprescindível. Enquanto os adultos cresceram em uma época na qual o equipamento era um utensílio distante, a geração de crianças e adolescentes do novo milênio teve acesso desde cedo. A tecnologia, entretanto, cobrou um custo alto dos jovens. Fechados no mundo digital, viram esse recurso, que era para ser complementar, tornar-se central
em suas vidas.  

Com estudos e pesquisas evidenciando os impactos do uso excessivo dos aparelhos, dificultando não apenas o aprendizado, mas também o desenvolvimento cognitivo, social e emocional, o governo federal reagiu. No dia 13 de janeiro deste ano, entrou em vigor a lei que restringe o uso de aparelhos eletrônicos portáteis em instituições educacionais públicas e privadas de todo o Brasil. Desse modo, o uso do celular foi proibido durante aulas, intervalos e recreios.

LEIA TAMBÉM: Animação e superação marcam 3º Desafio de Inverno

Publicidade

Assim, as escolas públicas e privadas de Santa Cruz do Sul precisaram adotar medidas a fim de garantir o cumprimento da lei. Passados seis meses, a comunidade escolar avalia as consequências
dessa medida.

Nyland: tecnologia é aliada do professor

Na Escola Estadual Nossa Senhora do Rosário, no Bairro Cohab, a regra é clara: ao chegarem na sala de aula, às 7h30, os estudantes devem colocar os celulares em um armário, que ficará trancado durante o dia. Eles só terão acesso aos aparelhos no final do turno da tarde, às 16h35. A medida, colocada em prática ainda no começo do ano letivo, deixou os alunos (até então acostumados a ter o celular à disposição) um tanto confusos. Conforme a vice-diretora, Ana Fernanda Rech, eles tiveram que reaprender a socializar e encontrar novas ocupações durante os intervalos e o recreio.

Uma das alternativas foram os clubes de protagonismo, na qual são responsáveis pelas atividades, e se encontram no horário de almoço para ajudar uns aos outros com as tarefas. A instituição também passou a oferecer oficinas de artes manuais e costura, entre outras. Não faltaram partidas de futebol e disputas acirradas de pingue-pongue e pebolim. 

Publicidade

LEIA TAMBÉM: Judoca de Santa Cruz busca ajuda para competir no Japão

Com o passar do tempo, a confusão inicial passou e os estudantes adaptaram-se à vida fora das redes digitais. O pátio da escola ganhou nova agitação depois da implementação da lei. Se antes eles iam ao local para usar o celular, cada um em seu canto, agora usufruem do espaço com atividades interativas. 
E a socialização voltou a ser cara a cara e não mais pelas redes digitais. “O relacionamento entre eles evoluiu muito. Agora eles brincam, conversam e se relacionam de uma forma mais saudável”, afirma a vice-diretora.

Nas salas de aula, a mudança igualmente ficou evidente. Antes, os educadores precisavam competir com o celular pela atenção, e este costumava levar a vitória. Sem o aparelho em mãos, a concentração voltou ao aprendizado. “A sensação é de que estávamos falando com as paredes. Agora eles nos escutam”, afirma o professor de Administração, Matheus Francisco Zavacki.
Para o estudante do 8º ano do Ensino Fundamental John Entony de Campos Ortiz, de 13 anos, o clima em sala de aula melhorou. Com os celulares guardados dentro do armário, ele e os colegas conseguem focar no conteúdo. “Os professores não precisam mais parar a aula para xingar quem estava mexendo no celular”, frisa.

Publicidade

Entretanto, a medida não implicou em restrição total a tecnologias nas salas de aula. Na Nossa Senhora do Rosário, os estudantes utilizam chromebooks e outros equipamentos para aprenderem a manuseá-los com responsabilidade. Heinz Ditman Nyland, professor de História, Mediação de Estudos e Práticas, salienta que é importante eles lidarem com as tecnologias, ensinando-os, por exemplo, a utilizar o ChatGPT. “É um dispositivo que eles já utilizam, que tem suas vantagens e torna a pesquisa mais rápida. O futuro está aqui”, destaca.

LEIA TAMBÉM: Martha Medeiros fala sobre ser patrona da Feira do Livro de Santa Cruz: “Entusiasmada”

Superar medos

Ivanice Dornelles Ferreira, professora da escola Nossa Senhora do Rosário, pode observar as mudanças provocadas pela implementação da lei não só em sala de aula, mas também na sua residência. Mãe de Anne Luiza Azeredo, de 15 anos, que estuda na mesma instituição, conta que o celular sempre esteve na rotina da filha. “Em alguns momentos, era preciso pedir para deixar um pouco o telefone a fim de fazer outras coisas.”

Publicidade

Inicialmente, a jovem achou que seria ruim, com medo de que não haveria “mais nada para fazer”. Para que Anne se adaptasse à nova orientação, Ivanice dialogou com a filha sobre a necessidade de reduzir a inquietação entre os jovens na escola. Mas ainda nas primeiras semanas, a jovem compreendeu que estava tudo bem e passou a interagir mais com os amigos. Na avaliação da docente, o processo de implementação demanda um grande diálogo não só na escola, mas também em casa.

LEIA TAMBÉM: Professora da Unisc será homenageada com medalha por atuação em defesa das mulheres negras

A vida dos jovens fora do mundo digital

Manter os celulares trancafiados em um armário foi uma ação difícil para os alunos. Longe de jogos e redes digitais, eles precisam encontrar novas formas de se manterem ocupados enquanto lidam com a ausência dos smartphones, que consideravam uma espécie de extensão de seus corpos. José Vinícius da Silveira, de 13 anos, viu sua vida mudar com a proibição. Além da dificuldade para se concentrar em sala de aula, tinha problemas para socializar no recreio, período em que ficava no celular. Por isso, sentiu-se mal ao saber que não poderia mais utilizá-lo dentro da escola. Mas no momento em que precisou mantê-lo no armário, o jovem passou a interagir com os colegas. Conforme foi desapegando do aparelho, as notas também melhoraram. 

Publicidade

José Vinícius está jogando mais xadrez
Maria Isabel gosta de ir à biblioteca

Longe do mundo digital, José dedica-se ao xadrez, aprendendo mais jogadas durante os intervalos. E em casa, passou a conversar mais com a família. “Percebi o quanto eu era dependente, não conseguia tirá-lo da mão, só pensava em jogar.”  Já Maria Isabel de Oliveira Claudino, 17 anos, aluna do terceiro ano do Ensino Médio, transformou a biblioteca da escola Nossa Senhora do Rosário em sua segunda casa. Na falta de atividades, ela vai para lá e mergulha em uma nova leitura. 

Contudo, nem sempre foi assim. O celular era fonte de distração, especialmente devido aos jogos, aos quais dava mais atenção durante as aulas. “Houve momentos em que não prestamos atenção no que o professor dizia, pois estávamos atentos ao que acontecia no celular”, admite. Por isso, Maria ficou em choque ao saber que o telefone passaria a ser proibido. Ela e os colegas ficaram incrédulos. Depois surgiu a preocupação: como lidar com a abstinência provocada pelo celular?

LEIA TAMBÉM: Gincana de Língua Alemã inicia em Santa Cruz e segue até setembro

Os primeiros dias não foram fáceis. A jovem tinha a sensação de angústia, como se estivesse faltando algo. Havia uma certa ansiedade em poder voltar para casa e acessar o aparelho. 
Mas, com o passar do tempo, entendeu que não era o fim do mundo e havia vida sem o celular. Logo substituiu-o pelos livros da biblioteca, adotando o hábito da leitura. E, ao prestar mais atenção nos professores, viu suas notas aumentarem. “Foram de zero a dez, mudaram muito. Ainda tenho dificuldades, mas foi uma mudança grande”, admite.

Hoje, Maria não olha para o smarthphone como extensão sua. Habituou-se ainda a usar menos em casa, onde também gosta de ler. “Até dá vontade de mexer, mas aí me lembro que a história que eu estava lendo era mais interessante. Agora não tenho mais aquela sensação de abstinência de antes.”

Os caminhos para as escolas além da proibição

A professora Cristiane Lindemann, dos cursos de Comunicação,e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Letras da Unisc, afirma que o uso excessivo de celulares por crianças e adolescentes gera uma série de impactos significativos. Muitos deles, ruins. No aspecto cognitivo, afeta a concentração, a memória e o desempenho escolar, pois o excesso de estímulos digitais acaba dificulta o foco prolongado em atividades mais exigentes. Já do ponto de vista social, é algo que provoca redução da quantidade e qualidade das interações presenciais, o que prejudica o desenvolvimento de outras habilidades fundamentais. 

Mas, para além de simplesmente proibir ou restringir o uso entre os jovens, a profissional defende que as escolas invistam em alternativas pedagógicas que ofereçam “sentido e engajamento aos estudantes”. Entre as estratégias, ele sugere a ampliação de projetos interdisciplinares com base em experiências práticas, incluindo oficinas criativas, rodas de conversa, debates, produções audiovisuais, cultura maker e jogos pedagógicos. Além disso, considera importante fortalecer a educação para o uso consciente das tecnologias, visando desenvolver o senso crítico em relação ao conteúdo consumido.

Nesse sentido, o professor Jerto Cardoso da Silva, pesquisador do Curso de Psicologia e do Mestrado Profissional de Psicologia da Unisc, defende que as escolas devem se consolidar como um espaço de presença e elaboração, que não se limita à transmissão de informação, mas à construção.
Por isso, acredita que, para além da proibição, é necessário implementar atividades educativas voltadas não só aos alunos, mas também a professores e familiares. “Precisamos de espaços de interação para favorecer vínculos, criatividade e expressão simbólica”, enfatiza.

LEIA TAMBÉM: Celebrações ao colono e ao motorista começam na região; veja programação

A secretária municipal de Educação, Jane Wunder Sabin, assumiu a pasta dias antes de o governo federal sancionar a lei. Inicialmente, ficou “assustada”, questionando se haveria resistência das famílias em relação à medida. O medo, entretanto, não se confirmou. A comunidade escolar da rede municipal entendeu a situação e apoiou a mudança, permitindo à Secretaria construir as ações para cumprir a nova legislação. 

Os próprios estudantes tornaram-se protagonistas da causa, ao participar de vídeos incentivando os colegas a deixar os celulares em casa e socializar mais nas escolas. Já as equipes pedagógicas elaboraram iniciativas para estimular a concentração em sala de aula e promover a leitura entre crianças e adolescentes. “Estamos vendo os estudantes interagindo novamente. Eles paravam um do lado do outro com o seu celular e jogavam online um com o outro. A verbalização que tinham era sobre o jogo. Agora não.”

Conforme a secretária, a implementação ocorreu de forma eficaz e natural, sem levar a uma ruptura do ano letivo. Tampouco, segundo ela, houve críticas ou reclamações quanto à medida. “No fim das contas, tivemos muito mais sucesso do que fracasso nessa implementação.”
Além disso, as instituições de ensino voltaram a intermediar a comunicação entre os pais e os alunos durante a aula. “As famílias precisam confiar nas escolas. Elas têm que entender que podem ligar para a escola, que vai chamar o filho”, ressalta Jane.

LEIA TAMBÉM: Festival Pratas da Casa inicia neste domingo em Santa Cruz

Mudanças simples, mas poderosas

Instituições de ensino privadas de Santa Cruz do Sul avaliam a implementação da lei nas salas de aula.

Colégio Mauá

“Após a promulgação da lei, a cobrança ficou mais fácil de ser aplicada e o uso fora da sala de aula também passou a ser mais controlado. As dificuldades ainda ocorrem, quando algum aluno ou outro tenta burlar a lei e a regra. Mas isso também entendemos ser papel da escola: educar pedagogicamente para que a atitude não permaneça.

No Colégio Mauá, os alunos substituíram as telas digitais pela leitura

Após a proibição, especialmente nos momentos de intervalo, há mais interação entre os alunos, que buscam outras maneiras de interagir e aproveitar a convivência coletiva, não mais individual. A reação da comunidade escolar e dos pais foi perfeita, sem problemas. E a leitura tornou-se um substituto ao celular.”

Colégio Dom Alberto

“Nossa escola adotou uma medida simples, mas poderosa: restringir o uso de celulares no ambiente escolar. Longe de ser uma proibição, a iniciativa foi bem compreendida pelas famílias e pelos estudantes. 
Afinal, todo mundo sabe que, para aprender de verdade, é preciso estar presente — de corpo e mente. E foi exatamente isso que aconteceu. Com menos tempo nas telas, nossos estudantes redescobriram o valor do olho no olho, do brincar livre, das conversas no pátio e das risadas coletivas. A interação entre eles aumentou. O convívio ganhou espaço. E a escola ficou mais viva.

Esse retorno à convivência real não é apenas encantador — ele é essencial. Brincar desenvolve criatividade, empatia, raciocínio lógico, cooperação e até a capacidade de resolver conflitos.”

Colégio Marista São Luís

“A principal mudança, e ela é notória, são os recreios, onde se vê eles mais interativos. Uma vez que eles não têm a possibilidade de acessar o celular, percebe-se maior interação entre os alunos, o que aumentou de fato com a restrição.  

Claro que passamos por um período de adaptação. As pessoas têm que estar atentas e entender que o uso é quase um movimento natural. No sentido de que o estudante busca pelo seu aparelho para uma resposta, uma ideia, para armazenamento de informações e dados. Passado esse período inicial, entendemos que sim, há um engajamento cada vez maior dos estudantes nas atividades.”

Escola de Educação Básica Educar-se

“As mudanças foram nítidas. No intervalo nossos jovens caminham mais, interagem e dialogam, de uma forma mais saudável. Durante as aulas estão mais focados, pois não ficam pensando em olhar o celular, verificar se chegou alguma mensagem etc. Quando os alunos ficam muito tempo com o aparelho celular, percebemos que isso causa ansiedade e desorganização nos estudos, pois o tempo passa e não conseguem se concentrar. Acreditamos, enquanto escola, que essa lei federal veio para fortalecer o que já sabíamos: o mundo fora das telas é cheio de vida, de potência, e viver esse mundo real é muito saudável e faz com que a vida seja explorada em sua plenitude.”

LEIA AS ÚLTIMAS NOTÍCIAS DO PORTAL GAZ

QUER RECEBER NOTÍCIAS DE SANTA CRUZ DO SUL E REGIÃO NO SEU CELULAR? ENTRE NO NOSSO NOVO CANAL DO WHATSAPP CLICANDO AQUI 📲. AINDA NÃO É ASSINANTE GAZETA? CLIQUE AQUI E FAÇA AGORA!

carolina.appel

Share
Published by
carolina.appel

This website uses cookies.