A Pedra Encantada já lhes era conhecida. Todavia, a sensação de incerteza invade nossos aventureiros. Um temor reverente faz com que todos fixem seus olhos no bloco de arenito, aparentemente inerte. Os nativos e as criaturas feridas denotam profunda e indisfarçável inquietação. O cervo aproveita o momento para se deslocar até o lugar onde as estacas de um loteamento haviam sido substituídas por árvores que se replantaram. Procura a companhia do cardeal. Mesmo atarefado com seu ninho, o cardeal recepciona festivo o amigo cervo. Não tarda para que Luna se irmane ao celebrativo encontro, assim como as abelhas e a libélula.

Enquanto isso, os demais seguem junto à Pedra Encantada. As duas cobras, num primeiro momento aninhadas sob um flanco da pedra, se apressam em deixar o esconderijo. É o tempo de o bloco de arenito ir se erguendo. Sem ajuda de ninguém, a rocha endurecida deixa o leito terroso e se posiciona alternando suas seis faces. Estarrecidos, ninguém se atreve comentar qualquer coisa. As respirações se mantêm suspensas no ar.

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Ao completar o giro hexagonal, o bloco de rocha, ainda em pé, realça o sulco que o recorta. Os nativos conseguem murmurar: “Foi nesse sulco que o sangue de nossos ancestrais escorreu.” Encorajadas, as criaturas feridas igualmente se manifestam: “Também nosso sangue, brotado de ferimentos doloridos e jamais cicatrizados, seguiu esta fenda.” O bloco de arenito começa a se desintegrar em grãos de areia, que lembram as antigas dunas da África Saarina. Os grãos de areia escorrem em direção ao sulco que drenou o sangue dos nativos e das criaturas feridas, como a recuperar originalidades terrivelmente massacradas.

Impossível não se sensibilizar com a visão, a um tempo aterradora e a outro misteriosamente cativante. Como sair dali? Líris aconchega a bonequinha a seu corpo e procura a mão da criança. Eva, Irene e Cristian se abraçam. Quanto tempo assim permanecem? Há situações em que o tempo não contabiliza instantes sequenciados, mas apenas estende sua impermanência à continuidade de um fio, sem preocupação com início e fim, dimensões desnecessárias, sem sentido.

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O hexágono rochoso já não se desenha em seus alinhamentos. Verte grão a grão, que se esparramam disformes, mergulhando, sem pressa, numa fratura do terreno, até há pouco sequer percebida. Para espanto de todos, o maciço bloco de arenito se desfaz em areia inconsolidada que percola, liquefeita, para a as entranhas da terra.

Os nativos e os feridos entendem o que acontece. “É um chamado. Nós temos que voltar pela trilha que nos trouxe até aqui há muito tempo.” Em alguma medida, refeita, Eva pergunta: “Por que vocês precisam voltar?” A resposta não tarda: “Se a rocha voltou a ser a areia das dunas que a formou, também nós podemos retornar pelo caminho que nos trouxe até aqui. Alguns de nós ainda guardam na memória originária vestígios do Peabiru. Saberemos voltar para nunca mais nos deixarmos massacrar.”

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Frente à incredulidade dos demais, a criança esclarece: “Aprendi na escola que Peabiru é o caminho que ligava os dois oceanos: o Atlântico e o Pacífico. Esse caminho transcontinental seguia a rota do sol. Por ele se queria chegar à ‘Terra sem Males’. Mas por este mesmo caminho chegaram os invasores, os exploradores, aqueles que nunca entenderam a virtude e a beleza em sua essencialidade.”

Líris se condói com a fala da criança: “Então, assim como destruíram pessoas em busca de minérios, também degradaram a natureza sem dó nem piedade?” Torna-se compreensível a despedida sem palavras dos nativos e vulnerabilizados. A dor excessiva os silencia.

As abelhas, Luna e a libélula retornam da mata em regeneração, a tempo de presenciarem o bloco de arenito se desfazer totalmente em areia fluida. Igualmente silenciosas, se despedem dos nativos e criaturas feridas, que se aprestam em retornar pela trilha ancestral do Peabiru. Cristian se pergunta: “Como se alcança a Terra sem Males?”

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Guilherme Andriolo

Nascido em 2005 em Santa Cruz do Sul, ingressou como estagiário no Portal Gaz logo no primeiro semestre de faculdade e desde então auxilia na produção de conteúdos multimídia.

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