Cristian verifica os sinais vitais do “irmão”. Coloca-o de bruços. Sinaliza para que todos se aproximem. Fala à criança: “Ele descansou. Veja seu rosto. Pela primeira vez, desde que o encontramos por aqui, parece em paz.” A criança não segura as lágrimas: “É meu ‘tio’. Cuidou de mim, do jeito dele. Sei que ajudou diversas pessoas e instituições.”

Eva e Irene a afagam. Líris mistura suas lágrimas às da criança. Antônio recomenda a todos um momento de reflexão e de compaixão. Talvez tenha sido Antônio uma das poucas pessoas que entendera o “irmão”, que o acompanhara nestes dias, que o fizera esperançoso. Cristian objetiva: “Precisamos tomar algumas providências, como avisar seus parentes e cuidar do velório e do sepultamento”. Líris divulga, através do celular, que o “irmão” falecera, e pede que parentes e amigos entrem em contato.

O Sanatório não dispunha de cemitério. Sempre que alguém viesse a óbito, os parentes eram avisados; no caso de ninguém se manifestar, as autoridades municipais se encarregavam dos atos fúnebres. O que fazer no caso do “irmão”?

Publicidade

LEIA TAMBÉM: Verde novo: “Ninhos

As horas passam e ninguém se apresenta. Eva, Cristian, Irene e Antônio transportam o corpo até a antiga portaria do Sanatório. Velam. Também os nativos, o pombo, as abelhas, o cervo, a libélula, as cobras e Luna se revezam em atenção silenciosa. “Tenho uma sugestão.” Todos se voltam para Tanice. Ela segue: “Conheci uma comunidade que enterrava seus mortos junto a algo significativo, que apaziguasse sua existência.”

Após uma pausa, prossegue: “Ele é um de nós. Com seus erros e acertos. Ninguém é totalmente bom ou ruim. Já que nenhum parente ou amigo chegou, o que vocês acham de a gente começar aqui um cemitério diferente, um lugar em que, ao invés de um sepultamento comum, tipo caixão e tudo o mais, se opte por plantar uma árvore junto à cova?” Eva gosta da ideia: “Eu posso tecer uma fita para ser amarrada na árvore com a identificação do ‘irmão’, e assim não será esquecido”.

Publicidade

Cristian reluta, quer ouvir Antônio, que atende: “É um pouco estranho. Mas o que não é estranho por aqui, não é mesmo? Acho que nestes últimos dias o ‘irmão’, a seu modo, encontrou algum sossego por aqui. Em seus momentos de rara lucidez, ele falava disso. A sugestão da Tanice é bem interessante. Não entendo dos trâmites legais para se instalar um cemitério deste tipo. Pensando bem, nem será propriamente um cemitério”.

LEIA TAMBÉM: Verde novo: “Estacas que brotam

Tanice acrescenta: “Até alguns faraós do antigo Egito eram identificados por uma espécie de colar, chamado de ‘cartuxo’. O colar era colocado em torno do pescoço do falecido. Assim, pensavam, o morto nunca seria esquecido, pois seu nome estava escrito no colar e assim permaneceria. No caso, o colar com o nome ficará amarrado no tronco de uma árvore. Cada sepultado terá uma árvore a zelar por ele. Nessa árvore os pássaros farão seus ninhos, os insetos vão encontrar seus esconderijos… Tanta coisa boa pode acontecer nesta árvore.”

Publicidade

Cristian pergunta à criança: “O que você acha? Se não chegar ninguém para buscar o corpo, vamos seguir a sugestão da Tanice?” A criança concorda: “Sim. Até lembro de um plátano de que o ‘tio’ gostava. Ele achava bonitas as folhas coloridas do plátano no tempo de outono”. Eva encaminha: “Então, já temos até o tipo de árvore que vamos plantar ao lado da cova: um plátano, que tem tudo a ver com proteção e cura”.

LEIA TAMBÉM: Verde novo: o “irmão”

E assim se faz. O “irmão”, após as despedidas, é sepultado na área do Sanatório. Junto à cova é plantada uma muda de plátano, que logo irá colorir o chão com suas folhas de todas as cores. Nisso Luna, como a referendar a decisão, se achega à criança, que sussurra: “Você lembra um pouco as cores das folhas dos plátanos. São lindas, como você e este seu pelo terracota”.

Publicidade

Ironia ou redenção? O “irmão”, que destruíra tantas árvores, agora repousa junto a uma delas, provavelmente da espécie que ele mesmo teria escolhido para sua eterna protetora. No horizonte algo muito estranho se anuncia. Vem com a rapidez do inesperado.

LEIA MAIS TEXTOS DE JOSÉ ALBERTO WENZEL

Publicidade

Guilherme Andriolo

Nascido em 2005 em Santa Cruz do Sul, ingressou como estagiário no Portal Gaz logo no primeiro semestre de faculdade e desde então auxilia na produção de conteúdos multimídia.

Share
Published by
Guilherme Andriolo

This website uses cookies.