Um ano após as enchentes, residências destruídas transformaram a paisagem de Vila Mariante em um cenário de caos e de ruínas. Fotos: Alencar da Rosa
Durante as Guerras Napoleônicas, no século 19, as tropas francesas se depararam com uma terra arrasada ao invadirem a Rússia. A manobra consiste na destruição das estruturas que possam ser aproveitadas por quem vier depois. Mais de um século se passou e a estratégia voltou a ser utilizada na Segunda Guerra Mundial, dificultando o avanço dos nazistas em território russo.
Hoje, quem passa por Vila Mariante pensa que a tática foi implementada no distrito de Venâncio Aires, tamanha a destruição. No final de abril e no início de maio de 2024, a comunidade, localizada a cerca de 20 quilômetros do centro da cidade, foi severamente impactada pela catástrofe climática que atingiu o Rio Grande do Sul.
Após o recuo das águas, a sensação era de que a vila, às margens do Rio Taquari, havia sido o epicentro de um terremoto. Passado um ano, tornou-se uma terra de ninguém, área entre as trincheiras inimigas na Primeira Guerra Mundial. Restaram apenas as ruínas do que um dia foram os lares das famílias que viviam na comunidade.
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Mariante, no entanto, não foi a única. Na parte mais baixa da cidade, o Arroio Castelhano alagou casas e atingiu níveis nunca vistos até então. Conforme o prefeito Jarbas da Rosa, foi a maior enchente na área urbana em 20 anos. Mas, assim como em conflitos históricos, a população resistiu. E sobreviveu. Em meio a traumas e feridas, buscam uma maneira de se reerguer e seguir em frente.
As enchentes do ano passado afetaram 751 residências em Venâncio Aires, conforme apuração da Secretaria Municipal de Planejamento e Urbanismo. Destas, 441 foram destruídas e são consideradas inabitáveis, a maioria nos distritos de Mariante e de Estância Nova.
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A partir de uma apuração, chegou-se a um total de 348 registros aptos para participar do programa Compra Assistida, do governo federal, destinado à aquisição de imóveis para as famílias afetadas pelas inundações.
Outras três frentes atuam para a construção de moradias. Através do “A Casa é Sua – Calamidade”, o governo do Estado vai instalar 72 unidades em Estância Velha, na área do antigo Instituto Penal Mariante. Além de demolir a edificação existente e remover a vegetação necessária, o Município será responsável pela infraestrutura de rodovias, canalização e rede elétrica. O investimento previsto é de R$ 7 milhões e está em processo de licitação.
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No mesmo local, será construída uma Unidade Básica de Saúde (UBS) para substituir a que foi destruída em Mariante. Para a obra, o Município contou com recursos da Defesa Civil, R$ 1,7 milhões no total. Ainda em maio, deverá ser aberta a licitação para construção da UBS. Desde a catástrofe, o atendimento à saúde em Mariante é feito por uma unidade móvel, que vai à localidade três vezes por semana.
E segue em andamento a construção de 52 unidades de moradia em um loteamento no Bairro Battisti. Cada uma terá 44 metros quadrados, incluindo sala, cozinha, banheiro e dois dormitórios. O projeto faz parte do programa estadual A Casa é Sua. O investimento total ultrapassa os R$ 4 milhões.
Há ainda o empreendimento Morada das Lavandas, no Bairro Aviação. Com investimento de R$ 17,25 milhões, serão 112 residências, a partir do programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), por meio do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR). A conclusão das obras está prevista para janeiro de 2026.
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Somando todas as iniciativas, o município terá 266 unidades habitacionais. De acordo com a secretária de Planejamento, Deizimara Souza, será o suficiente para atender a quantidade de famílias com aluguel social, que atualmente supera a 250. “Buscamos fazer o máximo para que essas pessoas não retornem para a barranca do rio.”
Diante dos riscos de novas inundações em Mariante, surge uma questão: o que fazer com o distrito? Embora uma parte considerável dos habitantes tenha ido embora, proprietários de estabelecimentos e moradores que não tiveram as casas totalmente destruídas pretendem permanecer e reerguer a comunidade.
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“Apesar de sabermos que Mariante não voltará a ser como era antes das enchentes, que a comunidade não retornará a ser como era antes, não temos como apagá-la do mapa”, afirma a secretária de Planejamento e Urbanismo, Deizimara Souza.
Além da limpeza das áreas no entorno da barranca do rio, o Município busca alternativas para o local. Um dos projetos apresentados pela Universidade do Vale do Taquari (Univates) foi a construção de praças e parques nas áreas que não podem mais ser povoadas. “Queremos atuar nesse sentido, para que certos locais sejam destinados mais para o lazer do que para moradia.”
Era por volta das 15 horas de segunda-feira, dia 12, e Edair de Brito, 73 anos, trabalhava em frente à sua residência de dois pisos no Distrito de Mariante, na ERS-130. Martelava um prego em uma tábua que mais tarde seria colocada em um cômodo da moradia destruído pelas enchentes de maio do ano passado.
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Os reparos, no entanto, não eram para retornar. Por estar na área de inundação, delimitada pela Secretaria Municipal de Planejamento e Urbanismo, sua casa foi classificada como condenada. “Assinei o laudo em que concordo em sair. Mas vou entregar ela arrumada antes de ir embora”, afirmou.
Durante cinco décadas, o lar do ex-marinheiro havia resistido às águas do Rio Taquari. Na última enchente, no entanto, chegaram ao segundo andar. “Foi terrível. Trabalhei a vida toda na água e nunca vi algo assim”, recordou, com a voz trêmula. No momento em que foi resgatado, faltava um metro para a casa ficar totalmente submersa. “Não queria sair. Mas os bombeiros vieram e me convenceram. Se eu ficasse, teria morrido”, desabafou.
Brito recebeu apoio do município e alugou uma residência temporariamente. No entanto, decidiu sair de lá e arrumar minimamente seu lar até receber uma nova moradia. “Estava ficando doente, com saudades da minha casa.”
Contudo, voltar e testemunhar o local onde viveu por 49 anos completamente destruído provocou uma dor jamais sentida antes. Em pânico, chorava com a cena terrível. Não só a estrutura da residência havia sido danificada, mas também seus móveis, roupas e outros pertences. “Destruição total. Não havia mais nada, nem mesmo o forro.”
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Na área do quintal onde ficava a criação de animais – aves, porcos, coelhos e patos, que morreram na enchente –, restaram apenas os escombros da residência. Porém, apesar do cenário caótico, Brito esperava mesmo era permanecer em Mariante. “Penso que vai ser uma vida melhor do que ficar aqui. Mas não queria sair. Me sinto inútil. Não tenho praticamente nada, nem uma coisa para viver.”
Para o ex-marinheiro, a comunidade de Mariante nunca mais será a mesma. Muitos moradores têm dificuldade de aceitar a situação. Outros foram embora e não retornarão depois que suas foram casas totalmente destruídas. “O povo desistiu. Não tem mais força para ir em frente e reconstruir. Todos estão sem força para isso.”
Localizada na avenida principal de Vila Mariante, a Agropecuária Xiló passou por várias enchentes desde que foi fundada, em 2008. Nenhuma delas, entretanto, provocou o mesmo nível de estragos da catástrofe do ano passado.
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As águas do Rio Taquari chegaram ao segundo piso da edificação (alcançando a 1,7 metro de altura), onde fica a residência do proprietário, Anderson Schossler, de 38 anos, e da esposa Bruna. Diante disso, o casal precisou ser resgatado de helicóptero. “Foi um dos piores momentos da minha vida”, enfatiza.
Schossler, conhecido como Xiló, voltou ao prédio oito dias depois, após a passagem ser aberta. Enquanto os demais empreendimentos no entorno apresentavam danos na estrutura, a agropecuária resistiu, mas cerca de 60% do material foi levado pela correnteza. Da casa, restaram apenas as paredes. “Foi muito triste ver o trabalho de tantos anos simplesmente se desmanchar”, desabafa.
Xiló levou pelo menos 15 dias para reabrir a loja. Um ano depois, afirma que está sendo bastante difícil, sobretudo pelo fato de que a maioria dos animais das propriedades foram mortos, levando muitos clientes a ir embora. O grande desafio foi o fechamento definitivo da escola estadual, que motivou muitas famílias a abandonar o local.
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Apesar disso, o empresário não desanima e garante que vai permanecer em Mariante. Ele estima que 70% dos habitantes devem retornar e, juntos, seguir com a reconstrução do distrito. “É bom ter essa esperança. Muitos pensam como eu e querem ficar.”
Questionado sobre o que faria no caso de uma eventual enchente similar à do ano passado, afirmou que voltará a reconstruir. “O futuro a Deus pertence. O que vamos fazer? Se ele mandar novamente, vamos aguentar, resistir e voltar depois.”
Um ano depois de o Arroio Castelhano ter transbordado e deixado a parte baixa de Venâncio Aires debaixo d’água, a esteticista Elen Johann continua receosa toda vez que chove. Em maio de 2024, a residência onde sua família vive há cerca de 17 anos foi tomada pela enchente, deixando-a muito traumatizada. Desde que se mudaram para a Rua Tiradentes, no Bairro Morsch, haviam lidado com três inundações. A água atingia no máximo 40 centímetros de altura.
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Após a enchente de 2014, Elen, que possui um salão de beleza em um cômodo da casa, achava que estavam livres de novos alagamentos. Nos dez anos seguintes, a rua foi pavimentada e recebeu uma nova rede de encanamento. “Acreditávamos que isso ajudaria”, comenta. Entretanto, nem mesmo a estrutura foi capaz de suportar a catástrofe iniciada no final de abril.
Sem imaginar as proporções, a família adotou as mesmas medidas de precaução tomadas nas enchentes anteriores. Ergueram os móveis com cavaletes a uma altura maior do que a água havia atingido previamente.
Desta vez, todavia, a água chegou a 1,85 metro dentro do lar da família Johann. Em uma peça nos fundos do terreno, subiu para 2,20. Elen e o marido, o músico Adriano, conseguiram sair de casa pouco antes do meio-dia, sem ter chance de elevar ainda mais os pertences.
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Na sexta-feira, puderam conferir a casa pela primeira vez e se depararam com um cenário horrível. Tudo estava fora do lugar. A geladeira, por exemplo, estava caída sobre a mesa. Uma cadeira que ficava no quarto de um dos filhos foi parar na sala. “Fico emotiva só de lembrar.”
Um dia antes da enchente, havia inaugurado um quarto sob medida, um antigo sonho da esteticista. Passaram a noite anterior colocando as roupas no novo guarda-roupa que, dias depois, foi jogado fora.
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Um dos poucos objetos recuperados foi um terço que pertencia ao pai de Adriano, que falecera meses antes. Ele estava guardado em um quarto, mas foi encontrado dias depois em cômodo nos fundos da propriedade. Com a ajuda de amigos, a família começou a limpar a casa para retornar. Levaram cerca de dez dias para retirar a água suja que havia restado.
Diante dos traumas, Elen sente-se dividida. Por um lado, ela e a família não têm mais vontade de morar na residência, onde estão há 17 anos. “Mas estamos aqui há muitos anos. Gostamos daqui, é um lugar muito bom. Mas, quando começa a chover, ficamos com o coração apertado, com medo de reviver aquilo de novo. Ainda estamos traumatizados.”
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