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Porões da rede

Deep web: a internet que você não conhece

Uma das repercussões do massacre de Suzano, em que dois jovens assassinaram dez estudantes e depois se suicidaram na Grande São Paulo, no último dia 12, foi a  possível participação dos atiradores em fóruns de ódio na dark web, uma camada da internet diferente daquela que usamos para acessar sites como o Facebook e o Google. Embora não seja possível atribuir o ataque na Escola Raul Brasil a um único fator, o Ministério Público investiga a possível conexão entre os atiradores e esses grupos, dentre os quais está o Dogolachan. No ano passado, uma operação da PF condenou Marcello Valle Silveira Mello, um dos fundadores do site, a 41 anos, seis meses e 20 dias de prisão por racismo, coação, associação criminosa, incitação ao cometimento de crimes, divulgação de imagens de pedofilia e terrorismo cometidos na internet. A página comandada por ele, no entanto, segue no ar e, pouco depois do atentado em Suzano, os usuários dela celebraram os assassinatos. A reportagem a seguir explica do que se trata a dark web, como funcionam as camadas ocultas da internet e como esses espaços podem ser utilizados para o “mal”.

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DEEP WEB X DARK WEB

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A internet que usamos diariamente para acessar as redes sociais e pesquisar assuntos no Google é apenas uma parte do que realmente existe na web, a “ponta de um iceberg”. Abaixo dela existe uma camada chamada deep web, onde fica a maior parte do conteúdo.  “A deep web é uma camada da internet que não é indexada. Então, quando se procura por um assunto no Google e aparecem sites sobre aquilo, nunca vai se encontrar um site da deep web, porque a intenção é que eles fiquem escondidos e só sejam acessados por quem interessa”, explica o doutor em Ciência da Computação e professor da Unisc), Charles Varlei Neu.

Segundo ele, os sites que conhecemos, como “www.gaz.com.br” são nomes fantasia que substituem um endereço númerico conhecido como IP.  Na deep web, no entanto, o nome não existe. “Podemos comparar a internet normal, ou surface web, como a agenda de contatos do celular. Não precisamos saber cada número, pois eles estão salvos e podemos procurá-los por nome. Já na deep web não existe essa agenda de contatos”, explica. Sistemas intranet de empresas, partes pagas de sites, e-mails e informações governamentais são alguns exemplos de conteúdos da deep web.

A dark web, por sua vez, é mais complexa. Conforme Neu, o termo correto seria dark net, já que o sistema não obedece ao protocolo da web, usado na internet normal e no restante da deep web. O acesso à dark net é um pouco mais difícil e exige ferramentas específicas. A mais famosa é o Tor. Quando o usuário entra em um site através do Tor, o pedido passa por vários servidores, criando uma grande teia, que dificulta o rastreamento do computador que realmente acessou aquele domínio.

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“Na dark net o nome dos endereços é criptografado, então, em vez do nome são usados conjuntos de letras e números longos sem nenhuma lógica. Além disso, os conteúdos da dark net tem uma grande camada de proteção”, detalha Neu.

Esses recursos garantem o anonimato dos usuários, e é aí que mora o perigo. Nesse ambiente onde ninguém precisa se identificar, acontecem as atividades ilícitas geralmente atribuídas à deep web: venda de drogas e armas, fóruns de grupos extremistas e preconceituosos e a distribuição desenfreada de conteúdos gore (violência explícita) e pedofilia.

A diferença entre o veneno e o remédio está na dose

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Pela garantia de anonimato, a deep web também é procurada por usuários inofensivos, que buscam apenas privacidade. O mesmo anonimato é buscado por vítimas de violência e opressões, que recorrem aos porões da rede para fazer denúncias anônimas. “Hoje, na internet comum, nós temos um sério problema de privacidade. Quando você procura pelo preço de um smartphone, por exemplo, nos dias seguintes uma série de anúncios e e-mails oferecendo esse produto começa a chegar. Por isso a deep web pode ser benéfica, e tem muito conteúdo interessante nela”. Ao contrário do uso “inconsciente” que fazemos da deep web quando estamos trocando e-mails, por exemplo, para acessar os sites em si é preciso usar programas específicos, como na dark web. O que muda são as intenções e o comportamento do usuário.

 

ENTENDA

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A maior parte dos conteúdos da internet está na deep web – CERTO
Os sites da surface web, ou seja, aqueles que podem ser acessados através de mecanismos de busca como o Google e Yahoo, correspondem a uma pequena parcela do que existe na internet. Ainda não foi possível precisar a porcentagem de conteúdo por camada, mas a estimativa é de que 85% a 90%  dos conteúdos existentes estejam na deep web.

A deep web é feita por criminosos, para criminosos – ERRADO
Qualquer pessoa pode acessar a deep web, através de programas específicos, e não há nada de ilegal nisso. Embora exista conteúdo ilícito na dark web, essa não é a finalidade da deep web, que serve principalmente para armazenar dados privados, como informações bancárias e governamentais.

É impossível ser rastreado na deep web – ERRADO
De acordo com o diretor do departamento de inteligência da Secretaria de Segurança Pública e especialista em crimes cibernéticos, Emerson Wendt, apesar de proporcionar anonimato e dificultar o rastreamento, a polícia tem ferramentas para chegar aos usuários da dark web. “Um planejamento, um crime, pode ser cometido de várias formas e uma delas é a internet, seja ela normal ou a deep web. O que muda são as ferramentas de acompanhamento do policial, que precisa ter um conhecimento um pouco mais profundo”. Segundo Wendt, não somente a compra de armas ou drogas é considerada crime. Menções a atos de “bravura”, como no caso de Suzano, e apologia a criminosos também são crimes, assim como ofensas e distribuição de conteúdos racistas e preconceituosos em geral.

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Nem tudo na deep web são armas, drogas e bizarrices – CERTO
Como muitas pessoas preferem o anonimato, o que é cada vez mais difícil na surface web, acabam procurando a deep web, o que faz com que haja muitos sites com conteúdos interessantes e inofensivos por lá. É da deep web, inclusive, que muitos “memes” surgem antes de passarem a circular no WhatsApp e no Facebook. No entanto, o anonimato também proporciona a prática de atitudes criminosas e assim é possível encontrar armas, drogas, e conteúdos ilegais na dark web.

Foto: EBC

 

A dark web e o massacre de Suzano

No submundo da rede, mais especificamente na dark web, existem dezenas de “chans”, fóruns onde os posts vão se somando em longas conversas que, em alguns casos, discorrem sobre assassinato, pedofilia, racismo e misoginia. Uma semana antes do massacre da escola de Suzano, um dos atiradores teria publicado um agradecimento ao administrador em um desses fóruns, o Dogolachan. “Muito obrigado pelos conselhos e orientações, DPR. Esperamos do fundo dos nossos corações não cometer esse ato em vão. (…) Nascemos falhos, mas partiremos como heróis”, diz a mensagem anônima.

DPR é a sigla usada pelo atual administrador do grupo, que assumiu após a prisão de Marcello Mello e forneceu detalhes de como teria ajudado os dois atiradores a conseguirem armas, além de descrever um deles como “um bom garoto que acabou descobrindo da pior forma possível que brincadeiras podem se tornar pesadelos reais”.

Apesar dos prints que circulam pela internet com essas mensagens, o Ministério Público de São Paulo ainda investiga se os autores do massacre de fato frequentaram o fórum. De qualquer forma, eles se tornaram ídolos do Dogolachan. “Homens de bem honrados”, escreveu um usuário, abaixo da foto dos atiradores mortos. “Temos os nossos primeiros atiradores sanctos formados no Dogola”, completou outro.

A criminóloga e escritora Ilana Casoy afirma que a existência de um espaço onde as fantasisas criminosas são aplaudidas pode contribuir para engatilhar um atentado como o de Suzano. “O assassinato em massa é muito grave, mas é grave também incitar o suicídio, o estupro, como fazem.” No ano passado um dos usuários do Dogolachan, André Garcia, 29, postou no site que iria “se quitar deste mundo”. Como resposta, recebeu: “Se for se matar, leve a escória junto”. Em junho, ele saiu de casa armado e atirou na nuca de uma mulher que jamais havia visto, em Penápolis. Quando a polícia chegou, deu um tiro no próprio peito. Conhecido no fórum como Kyo, ele virou um mito na dark web brasileira.

Esse ambiente, que idolatra assassinatos em massa, é formado em sua grande maioria por incels – homens que se autodenominam “celibatários involuntários”. Com problemas para se relacionar, procuram os chans para falar sobre solidão, inseguranças e frustração, mas estão longe de ser um grupo de apoio: em vez de se encorajar a superar seus traumas, são incentivados a se afogar na própria amargura, criando um ciclo vicioso de isolamento, decepção e ódio. Em um universo particular, cercado pelo anonimato, disseminam ódio e costumam colocar a culpa por sua falta de vida sexual nas mulheres, nos pais, nos homens sexualmente ativos e na ‘cultura moderna’.

Somando esses distúrbios comportamentais às possibilidades criminosas encontradas na dark web, onde proliferam grupos com usuários desse perfil, é possível estar diante de um dos componentes da fórmula que dá origem a atentados como o da Escola Raul Brasil.

Anonimato é apenas um dos fatores de risco

De acordo com o psiquiatra Vinicius Moraes, o anonimato da deep web contribui para comportamentos nocivos como os dos usuários dos chans. “Como na alegoria de Giges, um bom pastor que encontra um anel que lhe confere invisibilidade e o torna uma pessoa malévola e sem escrúpulos, as pessoas que navegam na deep web buscam dar vazão para suas perversões e pulsões mais animalescas e agressivas sem serem identificadas”, comenta. Moraes diz ainda que os jovens que participam desses fóruns costumam ter um histórico de isolamento social e um padrão repetido de desrespeito às normas e violação dos direitos dos outros. “Muitas vezes já se engajaram numa série de comportamentos violentos prévios que incluem brigas, roubos, crueldade com animais, bullying, violência sexual e uso de drogas. Lembro que o violento de hoje foi o abusado e negligenciado de ontem.”

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