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Direto da redação

Não podemos salvar Clarice

Desde que ouvi a história de Clarice, nunca me esqueci dela. Foi uma dessas pautas que a gente propõe e depois se vê na dificuldade de encarar. Clarice tinha todos os motivos para não falar. Mas queria. Queria ser ouvida. Por tanto tempo ignorada, não tinha receio de me relatar suas dores. Junto a um portão de madeira, Clarice me contou sua história. Era uma mulher forte. Abandonou o lar no interior para buscar um futuro melhor. Naquele tempo, ela ainda tinha sonhos. 

Clarice agora olhava para a rua torta como quem percebe que a vida tinha lhe roubado demais. Clarice teve filhos. E netos. E os enterrou. Mortos e vivos. Clarice sabia o que era perder. O que era ser derrotada. Para a vida. E, ainda assim, era doce. Revelava uma delicadeza que resistia em meio a tanta desgraça. Clarice era uma mulher como muitas. Saía de casa todos os dias para trabalhar. Enquanto isso, os filhos descobriam o mundo. E muitas vezes se perdiam nele. 

A história de Clarice poderia ser ouvida em muitos outros portões. Mães que viram seus garotos deixarem de ser apenas filhos. Moleques que passaram a ser temidos e, de certa forma, respeitados. E, assim como Clarice, talvez acreditassem que podiam salvá-los. Ao menos os que não tinham sido mortos. Ou talvez nem acreditassem. Só quisessem fazer de conta. O único faz-de-conta que a vida permite a quem nasceu bem longe de um mundo de conto de fadas. Assim como Clarice,  elas sofriam. Sofrem. E resistem enquanto podem.

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Enquanto conversávamos naquela tarde, eu sentia vontade de parar o tempo e salvar Clarice. Recomeçar. Dar a ela uma nova chance. Um começo. Clarice ainda tinha doçura. E isso não podia ser derrotado pela dureza da vida. Das desigualdades. Mas eu não podia. A vida de Clarice era aquela. E continuaria a ser. Até o fim. Quando então seria esquecida. E enquanto deixarmos que Clarices sejam esquecidas, junto com seus filhos e netos, vamos manter e alimentar essa luta injusta. Se não buscarmos uma solução que vá muito além de ver somente dois lados, vamos continuar sem encontrar uma resposta. 

Em um mundo ideal, Clarice seguiria para um trabalho justo, bem remunerado, enquanto seus filhos e netos iriam para a escola, teriam acesso a lazer, esporte e cultura. Não viveriam em uma casa improvisada. Teriam saneamento. Teriam onde brincar. O que comer. Chegariam em casa sorridentes. Ela abraçaria todos com ternura. E, assim, teriam um futuro. 

O mundo de Clarice não é feito de justiça. Muito menos de igualdade. Por mais que ela tenha brigado contra ele. Já não podemos salvar Clarice. Então só nos resta escolher. Podemos aceitar que o mundo dela não é o nosso. Manter os muros. Ou passar por cima deles. E pedir por Clarice. E por tantas outras. Reivindicar educação, saúde e dignidade para todos. Não torná-los artigo para poucos. Olhar para o lado e criar oportunidades, ao invés de nos omitirmos. Lutar por um mundo onde a vida não vença Clarice. Onde a vida, ao menos, lhe permita viver.

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