Na sexta-feira, dia 1o, Santa Cruz do Sul vira temporariamente a capital da leitura durante a 35a Feira do Livro. A estrutura para receber os livreiros e a programação, que neste ano vai durar dez dias, já está sendo montada na Praça Getúlio Vargas. O evento será retomado após seu cancelamento devido às enchentes que afetaram o Rio Grande do Sul no ano passado. Seu retorno se faz necessário diante dos indicadores acerca da falta do interesse pela leitura.
Conforme a última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, conduzida pelo Instituto Pró-Livro (IPL) e publicada no final de 2024, o País perdeu cerca de 6,7 milhões de leitores em quatro anos. Outro dado alarmante é quanto ao percentual da população brasileira que não leu sequer parte de um livro nos três meses que antecederam o levantamento: 53%. Considerando aqueles que leram uma obra na íntegra, o índice cai para apenas 27%.
Os números evidenciam a gravidade do problema e reiteram a necessidade de iniciativas que estimulem a formação de leitores. Nesse contexto, profissionais avaliam os impactos da falta de leitura entre a população. E, junto com leitores assíduos da biblioteca municipal, demonstram a importância de implementar o hábito da leitura na rotina.
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Na avaliação de especialistas entrevistados pela Gazeta do Sul, o acesso aos livros é um dos fatores que explicam a queda no número de leitores. “Para que as pessoas leiam livros, é importante que eles sejam acessíveis”, evidencia a professora e pesquisadora Rosângela Gabriel, da graduação em Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc).
Rosângela cita o exemplo de Santa Cruz ao questionar quais bibliotecas estão abertas em horários adequados para que os adultos possam retirar e devolver livros. Ou mesmo para que possam passar algumas horas dentro da biblioteca, lendo. Também acha necessário saber a verba mensal ou anual destinada à atualização do acervo desses espaços.
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Na sua concepção, muitas bibliotecas são pensadas para atender às necessidades dos estudantes, nos diversos níveis de ensino (Educação Infantil, Ensino Fundamental, Médio e Superior). Porém, na sua visão, é como se após concluir a educação formal as pessoas não precisassem mais ter acesso às bibliotecas e aos livros, como se as pessoas estivessem “formadas”, sem nada mais para aprender.
A pesquisadora, entretanto, considera essa perspectiva um erro. Para ela, é necessário pensar na leitura profunda como um exercício diário para a manutenção da saúde do nosso cérebro. “Assim como temos academias de musculação espalhadas pela cidade, para desenvolvimento e manutenção dos músculos e da flexibilidade corporal, são necessárias bibliotecas em que as pessoas possam ler e exercitar o raciocínio e a flexibilidade mental”, justifica.
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O presidente da Academia Rio-grandense de Letras, Airton Ortiz, considera que há problemas enormes envolvendo o acesso. Especialmente devido ao fato de que há escolas sem biblioteca ou que possuem uma estrutura defasada. Ortiz defende que as instituições de ensino voltem a atualizar o acervo para despertar a atenção dos leitores. “Considero um absurdo uma escola não ter uma biblioteca. E não é só uma biblioteca como depósito de livros, mas com um bibliotecário profissional, que vai transformar aquele espaço num centro irradiador de cultura para os alunos da escola”, avalia.
Contudo, Ortiz evidencia também a concorrência da leitura com os novos meios de comunicação, sobretudo a internet. Enquanto antigamente os romances poderiam ultrapassar as mil páginas, já que não havia outras formas de entretenimento para disputar o tempo dos leitores, hoje muitos possuem menos de 300, já que as pessoas dedicam menos tempo à atividade.
Na sua avaliação, a internet deveria ser uma ferramenta para despertar a curiosidade pelos livros, permitindo que as pessoas se aprofundem em determinados temas. “Mas, hoje, a preguiça mental da maioria das pessoas está fazendo com que elas fiquem nessa informação superficial da internet, e não busquem aprofundá-las. E a culpa não é da internet, mas do mau uso”, aponta.
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O presidente da Academia Rio-Grandense de Letras também critica o fato de que os escritores não estão sabendo se comunicar com o público atual. Para ele, é necessário modernizar a escrita e não seguir com um estilo datado, feito há 50 anos. “Penso que boa parte da responsabilidade pela diminuição do número de leitores é dos escritores, que não estão sabendo chegar nesse público novo que a cada geração entra na sociedade.”
Os entraves e as limitações dos não leitores
O que a maioria dos não leitores talvez não perceba é o potencial por trás do simples ato de ler um livro. A professora e pesquisadora Rosângela Gabriel destaca que a leitura transforma a maneira como o cérebro processa e armazena informações. A atividade, conforme a especialista, é extremamente importante para o desenvolvimento e a manutenção do raciocínio, da inteligência e do pensamento complexo. E a leitura de livros (literários ou não) em diferentes suportes (papel, computador, tablet etc.) desenvolve o pensamento complexo e a capacidade de concentração.
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Para Rosângela, a falta de leituras mais desafiadoras, que exigem concentração e raciocínio complexo, limita as oportunidades para o exercício cognitivo necessário a fim de compreender relações de causa e efeito, simular situações com diversas variáveis, aprender por meio da leitura.
“O desconhecimento sobre o contexto mais amplo que gerou uma determinada situação torna o cidadão refém de uma determinada interpretação, com poucos elementos para contra-argumentar, para pensar criticamente e contribuir na busca de soluções para os problemas enfrentados pela sociedade”, pondera.
O presidente da Academia Rio-grandense de Letras (ARL), Airton Ortiz, reforça o papel dos livros na compreensão da sociedade e de sua pluralidade. Através deles, o cidadão tem contato com diversos pensamentos, o que estimula a ver a sociedade como extremamente complexa.
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Na avaliação de Ortiz, a leitura também leva o leitor a amadurecer emocionalmente. “Quando eu leio um bom romance, uma boa novela, um bom livro de contos, vou vivenciando emocionalmente as peripécias pelas quais os personagens vão passando. E isso faz com que eu vá aflorando os meus sentimentos e eu vá me dando conta, vá percebendo a riqueza que nós somos emocionalmente”, afirma.
Mas, se por um lado a leitura é um divisor de águas para o cidadão, aqueles que não leem são muito impactados. Para Ortiz, a falta de leitura impede a construção de um pensamento abstrato, importante para se relacionar com a realidade e entender o que ocorre em seu entorno. “A leitura permite que as pessoas consigam se posicionar diante da realidade a partir da construção de um pensamento lógico feito pela leitura.”
Já a pesquisadora do PPGL considera que a falta de leitura mais desafiadora limita as oportunidades para o exercício cognitivo necessário para compreender relações de causa e efeito, simular situações com diversas variáveis, aprender por meio da leitura.
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Rosângela atenta que a leitura é a melhor forma de ampliar os problemas enfrentados pela sociedade, além de compreender as consequências das decisões. Nesse sentido, o presidente da ARL considera que os não leitores perdem a capacidade de aprender a se posicionar diante da realidade, ter suas próprias opiniões, defender seus interesses e perceber quando algo os prejudica. “Uma democracia só se constrói com pluralidade crítica, onde cada pessoa tem a capacidade de formar uma opinião crítica diante da realidade e decidir o que é melhor para ela e, como consequência, o que é melhor para uma sociedade”, ressalta.
A Feira do Livro é um símbolo de esperança
Em meio aos indicadores evidenciados no Retrato da Leitura no Brasil, as feiras do livro tornaram-se um símbolo de esperança. Os vastos acervos de livros presentes, aliados à programação, são fundamentais na formação de novos leitores.
Nesse sentido, a agente de Cultura do Serviço Social do Comércio (Sesc), Lisiane Camargo, destaca que a 35ª Feira do Livro e a 1ª Festa Literária Internacional de Santa Cruz visam estimular a leitura por meio de atividades como contação de histórias, encontros com escritores e oficinas, além de ações nas escolas. “A programação é acessível e pensada para todas as idades, criando oportunidades de aproximação com o universo literário.” O Sesc também atua de forma contínua na programação, com projetos como o Arte da Palavra, bibliotecas e ações culturais.
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A professora aposentada Sônia Maria Dettenborn Luz, integrante do Colegiado Setorial do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas, do Sistema Estadual de Cultura do Rio Grande do Sul, evidencia a importância de visitar as feiras. Para ela, o simples ato de passear pelo evento e conferir a programação já é válido. Especialmente na de Santa Cruz do Sul, que fica situada na Praça Getúlio Vargas, na área central do município, de frente para a Catedral São João Batista.
Por isso, ela reitera que a população não deixe de visitar a feira. “De repente, lá a pessoa se sente movida a abrir um livro ou, de repente, até comprar um”, afirma. Sonia, que no ano passado recebeu uma homenagem em Brasília pelo trabalho de contadora de histórias, enfatiza a oportunidade de conhecer no evento o mundo da leitura, que abre perspectivas e aumenta o conhecimento. “Aquele que não lê perde a descoberta de um mundo gigante, que desconhece por não ter acesso a essas palavras. Quem não lê vive em um mundo ainda bastante obscuro, por ter dificuldade de acessar outras áreas do conhecimento.”
Por alcançarem um público que não costuma frequentar livrarias, as feiras, considera o presidente da Academia Rio-grandense de Letras, Airton Ortiz, são fundamentais na formação de novos leitores. Além do acervo variado, elas contam com atividades (incluindo palestras, oficinas e mesas de debate) que ajudam o leitor a encontrar obras que atendam a seus interesses. “É importante também para divulgar o livro e colocar o leitor em contato com autores e mediadores de leitura”, salienta.
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Uma companheira das aventuras literárias
Moradora do Residencial Laranjeiras, no Bairro Higienópolis, Gelsa Eifler, de 85 anos, tem os livros como seus companheiros. Sua rotina de leitura começa ainda pela manhã, ao folhear as páginas da Gazeta do Sul. O caderno Magazine é seu favorito, sobretudo as crônicas do Aidir Parizzi Júnior e o folhetim do José Alberto Wenzel. “A Gazeta é sagrada”, diz.

Depois, dedica-se a algum livro da biblioteca municipal. E, quando não está em alguma das atividades do residencial, gosta de ir para um dos seus recantos de leitura. Ela não sabe dizer quantos livros lê por mês. A depender do tamanho, costuma terminar uma obra em menos de uma semana. “Só sei que leio bastante. Nunca li tanto quanto agora.”
O gosto pela leitura começou ainda na infância, inspirado pelo seu pai. “Ele também tinha essa mania de ler, tinha uma estante cheia de livros na sua sala”, recorda. Pela leitura, ela consegue viajar junto com os personagens sem sair do conforto da poltrona. “Me sinto uma companheira das aventuras”, admite. Por isso, Gelsa está sempre carregando um livro. Para aqueles que não têm gosto pela leitura, ela sugere começar por um tema de sua preferência. “Daí tu acaba se envolvendo e acaba gostando. Pra mim, a leitura é uma ótima companhia.”
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Afastado do “inimigo” para focar a leitura
Morador da Linha João Alves, Marcos Laércio Kuhn, de 56 anos, é uma figura conhecida na biblioteca municipal de Santa Cruz do Sul desde 2003, quando se mudou para o município. Mensalmente, costuma pegar cerca de quatro livros. O tempo de leitura pode variar de 30 a 45 dias, a depender da obra. “Se ela me interessa, eu leio duas vezes”, afirma.

O hábito de ler começou na infância, nos tempos em que estudava em Bento Gonçalves. “A leitura abre o teu consciente. É muito melhor do que assistir a um filme.” Além de romances, Kuhn tem interesse por biografias. Cita como exemplo A lanterna da popa, escrito pelo economista Roberto Campos, que foi deputado e ministro. “Tu começa a ver o Brasil num leque mais amplo, porque ele conta a história do país de 1930 até a abertura política”, destaca.
Entre as obras que estava prestes a levar para casa, carregava clássicos do horror, incluindo Drácula, de Bram Stoker, e contos de H.P. Lovecraft. Junto com estes, tinha ainda Doktors, escrito por Claus Michael Preger, que conta a história da medicina no Rio Grande do Sul. “A leitura tem isso, poder conhecer histórias diferentes e ter uma visão ampla de assuntos”, salienta.
Para poder ler tantos livros, Kuhn afirma que necessita de tempo e paciência. Consegue ler por até cinco horas em um dia. “Eu já fiquei 12 horas sentado lendo. Dá pra começar e terminar um livro no mesmo dia”, conta. Outra tática é ficar longe do celular. Se for preciso, deixa ele desligado e vai para a varanda, ao sol, e dedica-se à leitura. “O telefone é o pior inimigo da cultura”, afirma.
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