Jorge Luis Borges, nome clássico das letras argentinas, criou esta história sob o título “O outro”. Ela abre o volume de contos O livro de areia, publicado em 1975. O protagonista é o próprio autor, que “recorda” um estranho episódio que teria acontecido com ele em Cambridge, em 1969.
Estava Borges sentado em frente a um rio quando percebeu, na outra extremidade do banco que ocupava, a presença de um rapaz familiar. Inicia-se, então, um diálogo perturbador no qual o escritor percebe que está conversando com ele mesmo – só que meio século mais jovem.
“O outro” é seu duplo. Parece um sonho, mas ele tenta encarar a situação com naturalidade. “Afinal, ao recordar, não existe ninguém que não se encontre consigo mesmo. É o que nos está acontecendo agora, só que somos dois”, observa.
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O tema do duplo, ou do Döppelganger – palavra alemã que significa “aquele que caminha ao lado” –, é um velho tópico da ficção literária. Base de muitos textos, como O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, no qual Mr. Hyde é a versão maligna do pacato Dr. Jekyll; ou o conto William Wilson, de Edgar Allan Poe, em que o tal William desespera-se tentando fugir de um sósia que surge do nada em momentos críticos, como se fosse uma manifestação de sua própria consciência.
Ouvi falar que Döppelgangers existem na vida real. Não seres enigmáticos, mas pessoas de carne e osso, gêmeas quase idênticas – apenas sem vínculo biológico. Pergunto-me se talvez não ande por aí, tomando café em qualquer lugar do planeta, outro Luís Fernando. Ou mais de um (para piorar). Talvez até por perto. Como no filme A Dupla Vida de Véronique, em que a polonesa Veronika, ao caminhar por uma rua de Cracóvia, enxerga casualmente sua réplica Véronique (uma francesa) dentro de um ônibus.
Meu duplo teria gostos parecidos? Teria sido bem-sucedido onde falhei, acertado onde errei, ou vice-versa? Será que, quando nos encontrássemos, não ficaríamos ambos com a impressão – como no conto de Borges – de cada um ser “o arremedo caricatural do outro”?
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Ele poderia, quem sabe, discordar de todas as minhas opiniões. Ser uma antítese, uma imagem em negativo, como às vezes parece acontecer entre irmãos e conterrâneos. Quando os nazistas ocuparam a Bielorrússia, na década de 1940, havia militares na resistência e outros apoiando os alemães. Os colaboradores, por uma lógica peculiar, chamavam os demais de “traidores”.
Difícil quando o espelho odeia sua imagem.
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