Um fenômeno silencioso, ainda despercebido ou, pelo menos, não colocado em debate, deveria entrar urgentemente no radar de quem tem delegação e aval público pelo voto para pensar o futuro de Santa Cruz do Sul. Muito em breve, a realidade fundiária e a configuração imobiliária do município vão mudar radicalmente.
Explico. Quando iniciei minha trajetória na redação da Gazeta do Sul, no final dos anos 70, um dos temas predominantes da pauta era o êxodo rural. Ou seja, famílias ou integrantes delas que saíam de suas propriedades no interior para buscar alternativas de sobrevivência, sobretudo nos centros urbanos.
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Sei que esse tema é pertinente a muitos que leem este artigo que, assim como eu, saíram em busca de novos horizontes porque não haveria espaço para todos nas pequenas propriedades de nossos pais. O enfoque, quase sempre, era o inchaço da zona urbana, despreparada e sem infraestrutura – habitacional, educacional, de saúde – para receber esse contingente migratório da colônia, como se dizia.
Foi apenas o começo. Falo de Santa Cruz, mas é também o retrato de Venâncio Aires, de Vera Cruz, Sinimbu, Candelária, Vale do Sol, Rio Pardo e tantas cidades mais que replicaram o mesmo fenômeno. O que será de nós sem a produção do nosso interior? – questionávamos à época em sucessivas reportagens.
Pois é, mais de quatro décadas se passaram e o quadro só se agravou. Pior: se anuncia inquietante. Dias atrás estive em evento no interior e amigos de infância descreveram a situação referindo-se somente às famílias tradicionais. Enumeraram quase uma dezena de propriedades ao longo de menos de dois quilômetros de estrada que não têm sucessão em atividade rural e já estão ou ficarão desativadas em breve.
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Não precisa ser estudioso para entender. Na mesma proporção em que as famílias ficaram menores, também diminuíram os investimentos no interior: as escolas nas localidades foram fechadas, as crianças são transportadas para centros urbanizados e dali seguem sua trajetória, na maioria sem perspectiva de retorno porque – como ouvi – “o celular não funciona, a internet é precária, a luz leva dias para voltar quando vem temporal, e a gente precisa andar no barro pelas estradas quando chove”.
Em contrapartida, há um movimento inverso, de avanço do setor imobiliário urbano sobre o interior. Propriedades que eram produtivas aos poucos vão mudando o seu DNA e, de sinônimo de subsistência, passam a ser a ambição de famílias de outras paragens que sonham em se conectar com a vida simples da colônia, com a natureza, o campo, os animais. Cultivar uma horta, criar alguns peixes no açude, quem sabe ter um cavalo, algumas ovelhas ou uma pontinha de gado na pastagem, são coisas que fascinam. Mas também há os que miram apenas um projeto de lazer, um local de descanso e aconchego familiar e com os amigos.
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Não há nada ilegal nisso. Mas há, sim, motivo para reflexão. São histórias de famílias tradicionais que vão sendo varridas para fora de seus domínios como se fossem antiquadas, superadas, descartáveis talvez.
Acho triste. Já vi isso acontecer. Uma sede quase secular, a casa, os galpões, o pomar, tudo patrolado e enterrado para dar lugar a um novo cenário: sobre as memórias, uma lavoura de soja.
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No nosso caso, certamente não será a soja, mas qualquer aposta que instigue o sonho. Acho que devíamos nos perguntar: isso que está acontecendo é bom ou ruim? O município e seus gestores estão cientes do impacto dessa mudança?
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