Na Feira de Porto Alegre, comprei o livro Contos do povo Kaingang, de Ademir Garcia e Pedro Pó Mág Garcia, ilustrado por Vera Kaninka. Ademir nasceu em Nonoai, foi professor e atualmente estuda Direito na Ufrgs, sendo membro atuante do Movimento Indígena Universitário. Pedro é filho de um “kujá”.(*) Vera é alfabetizadora na língua kaingang e está se formando em Artes Visuais, na Ufrgs.
Meus primeiros 11 anos, vivi em Iraí, cidade vizinha a Nonoai, onde os kaingang estavam aldeados pela Funai. Mas continuavam nômades na essência. Para mim, parecia que vinham de um outro mundo: chegavam da mata por uma ponte pênsil sobre o Rio do Mel, os pés descalços, os passos pequenos e ligeiros, as mulheres com um bebê no cesto colorido preso à cabeça por um cipó, e outras crianças brincando ao redor. Grandes e pequenos sempre rindo e se surpreendendo com cada ser ou acontecimento. Décadas depois, percebi ali concretizada a tese da “admiração ingênua” de Aristóteles – aquele olhar de estar vendo tudo como se fosse a primeira vez.
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Voltando ao livro sobre a cultura Kaingang, um pai, que também é Kujá, vai acompanhar o filho em sua primeira caçada. Antes, ensinara o menino a cultivar a “ceva”(**), a seguir rastros, ouvir os ventos, a entender os sons da floresta e a respeitar os animais. A caça é um costume antigo e necessário, e fazem-no com gratidão à floresta.
Partiram cedo, numa manhã, levando milho, cordas e um facão. Cruzaram rios, trilhas e sombras. À tardinha, chegaram. Na ceva, tudo estava comido. E, pelos sinais, pacas deviam ter andado por ali:
– Hoje vamos comer paca! – festejou o guri.
Calma, o pai avisou: esta noite nossos avós podem vir, pois pedi que se mostrassem a você, filho. E recomendou:
– Deixe vir, o que precisa vir.
O que veio: o vento forte, depois a calma, uma música suave, música entre as árvores, sons de festa, risos, danças. A seguir, choros, lamentos e, logo, um canto ancestral começou, leve como fumaça. Então, um grito alto, e um estrondo cortou o silêncio.
O menino correu para a ceva, enquanto o pai ficou no acampamento, preparando o fogo.
***
Minha vó Irene também preparava a ceva, para nós, quando vínhamos de férias, para Santa Cruz. Bolos, sucos, geleias, merendas, frutas e, ao final das férias, éramos pacas gordinhas de tanto amor engolido. Beijo, vó!
***
Glossário constante no livro:
() Kujá – líder espiritual ou pajé da comunidade Kaingang. () Ceva – espaço na floresta onde se coloca comida para atrair os animais; depois, esse lugar pode ser usado para caça. () Ancestrais – Pessoas que viveram antes de nós, como nossos avós e bisavós, que nos ensinaram coisas importantes sobre a vida e nossas tradições.
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