Se você tivesse poder nas mãos, faria com ele o quê? Que espécie de mudança? Se o ano prestes a começar der oportunidade de corrigir o que pareceu um despropósito em 2025, por onde iniciaria? Questões não muito originais evocadas a partir de um conto de Philip K. Dick, escritor norte-americano e criador de Blade Runner. Chama-se A cidadezinha e conta a história de Verne Haskell, homem que, aos 43 anos, conclui a obra de sua vida: uma maquete perfeita da cidade onde vive, Woodland.
É uma miniatura que reproduz cada rua, loja, casa, indústria e espaço público em detalhes. Numa mercearia, dá para ver balcões com mercadorias expostas e cartazes com preços. Em um hotel, pela janela é possível avistar o saguão, com seus sofás e cadeiras. Haskell se dedicara a isso desde a tenra adolescência, diariamente. Todas as tardes, chegava em casa da escola e punha mãos à obra; e, anos depois, sempre ao voltar do trabalho. Empregado, casado (por incrível que pareça) e absorvido no seu hobby excêntrico.
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Aos 43, prestes a concluir sua réplica, vem o baque: ele não se identifica mais com aquilo. Não daquele jeito. Talvez seja a crise da meia-idade, mas Haskell pensa agora que a cidade “levara o melhor dele”. Boa parte do que lhe causava fascínio passa a provocar repulsa. Certas indústrias, bancos, repartições, lugares públicos e privados.
Então decide fazer mudanças. Destrói miniaturas e as substitui por outras. Aos poucos, reinventa o mapa de Woodland. Ele pode, afinal é o criador, engenheiro e executor. “A fábrica de tintas. Detestava o cheiro de tinta. Talvez uma panificadora no lugar.” A casa de um sujeito que o prejudicou: Haskell pega o modelo e faz em pedacinhos.
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Também acrescenta hospitais, melhora a iluminação em ruas escuras, dá uma “repaginada” nos bairros mais pobres. Tudo para chegar ao que, agora, considera próximo da perfeição. Sendo uma história de Philip K. Dick, em algum momento realidade e fantasia se confundirão, como em um bom episódio de Black Mirror. A ambição de Haskell, note-se, é individual: ele molda o cenário exclusivamente a partir de seu julgamento.
Décadas depois, um escritor brasileiro publicará um conto “primo-irmão” de A cidadezinha. Em Arquitetura dos sonhos, o mineiro João Batista Melo apresenta uma velha artesã que recria em miniatura sua localidade. Enquanto a cidade verdadeira dá a impressão de que “ia se desfazer a qualquer momento”, a reprodução parece sólida e bela.
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Quase todos os moradores sentem a vida “fervilhando nas esquinas” daquele simulacro. Torna-se um ideal, um anseio compartilhado. E um ideal partilhado tem mais chance de se converter em mudança pertinente. Que se pense nisso e menos em particularismos, de indivíduos ou facções: meu desejo para 2026.
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