Em sua programação desta quinta-feira, 7, a 1ª Festa Literária Internacional, em simultâneo à 35ª Feira do Livro de Santa Cruz do Sul, terá a presença de uma das principais autoras latino-americanas da atualidade. A cubana Teresa Cárdenas, 55 anos, natural da província de Matanzas, a 100 quilômetros de Havana, capital do país, virá falar de sua obra, na qual reverbera justamente a história e a cultura de sua terra natal.
E foi em parte em virtude das reações em Cuba a suas narrativas que ela optou por se fixar no Rio de Janeiro. Ali, dá continuidade a sua escrita, e a partir de lá comparece a eventos, entre eles a Feira do Livro de Porto Alegre, na qual esteve em 2016 e de novo em 2023.
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No Brasil, está nas livrarias, entre outros títulos, seu romance Cachorro velho, de 2005 (no Brasil, 2010), ambientado em contexto de escravidão no período colonial em Cuba. Racismo, violência física e psicológica e falta de perspectivas para o povo negro são temas também de Cartas para minha mãe, de 1997 (no Brasil, 2010). A Pallas tem editado sua obra. Na iminência da vinda a Santa Cruz, concedeu entrevista exclusiva à Gazeta do Sul.
Quem é
Uma das vozes mais respeitadas da literatura afrodescendente em Cuba, Teresa Cárdenas é ainda atriz e ativista, sendo autora de obras premiadas que abordam o racismo, a desigualdade social e a cultura afrocubana com sensibilidade e profundidade. Pela Pallas, além de Cartas para a minha mãe e Cachorro velho, lançou Mãe sereia (2018), Awon Baba (2022) e agora As trapalhadas de Mulo.
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Entrevista – Teresa Cárdenas, escritora cubana
- Gazeta do Sul – A senhora era para ter participado da Feira do Livro de Santa Cruz em 2024, mas então houve a enchente no Rio Grande do Sul. Como foi aguardar por um ano para enfim visitar a cidade? Foi um choque enorme. Normalmente não acompanho o que acontece na televisão, exceto por notícias muito específicas, e naqueles dias eu não estava prestando atenção às notícias. Estava focada nos preparativos para a viagem: organizar minha palestra, meus livros, minha mala e também arrumar tudo em casa com meus filhos. Eu estava prestes a pegar um voo no dia seguinte para Santa Cruz — primeiro para Porto Alegre, depois por terra — quando me ligaram, já de noite, e me disseram: “Teresa, infelizmente o evento foi cancelado”. Fiquei surpresa. Perguntei o que tinha acontecido e então me contaram. Liguei a televisão e fiquei praticamente em choque. Ver aquela cidade que tanto amo, Porto Alegre, debaixo d’água, com pessoas desaparecidas, com tanto sofrimento… Foi muito forte. Tenho amigos próximos lá, irmãos, colegas que até perderam parentes. Foi profundamente doloroso. Um ano depois, aqui estamos, e eu celebro a força do povo de Santa Cruz, do povo do Rio Grande do Sul, que, mesmo com a cidade submersa, não desistiu dos seus projetos, dos seus sonhos, da sua vontade de reconstruir. Isso, para mim, é admirável. Como mulher estrangeira, como cubana radicada no Brasil, é cristalino para mim do que você é feita. Foi uma lição. Estar aqui hoje é, para mim, uma forma de celebrar essa força, essa alegria de se reerguer e seguir em frente.
- Como está a expectativa para agora finalmente visitar a região? Tenho grandes expectativas. Quero finalmente chegar a Santa Cruz, conhecer a cidade, que me disseram ser linda. Quero visitar alguns lugares icônicos, absorver o que o lugar tem a oferecer. Também me interesso muito pela obra dos autores da região, que sei ser uma produção literária intensa e de altíssima qualidade. E, acima de tudo, me interesso muito por conhecer leitores. Por contar a eles sobre mim, meus livros, minhas histórias. Por criar uma relação bonita com a cidade, com as pessoas. É isso que sempre busco em cada viagem: estabelecer uma ponte humana, verdadeira, como já fiz em outras cidades e eventos no Brasil. Para mim, isso é o que a literatura tem de mais valioso: a possibilidade de criar laços que nos transformam e nos tornam pessoas melhores.
- Como tem sido esse último ano em termos de produção literária e de compromissos? Foi uma agenda intensa? Sim, foi um ano muito intenso e, ao mesmo tempo, profundamente gratificante. Parte do trabalho árduo que tenho feito envolve visitar escolas, encontrar-me diretamente com os alunos. É algo que me traz muita alegria: conversar com eles, responder às suas perguntas — que são sempre muitas e muito intrigantes — sobre a minha literatura, minha família, sobre Cuba… Essas trocas me enchem de energia. Estou especialmente feliz porque um dos meus livros, Meu avô Tatanene, foi publicado em 2024 aqui no Brasil pela Editora Cultura, de São Paulo, e já foi adotado por uma escola em Taquara (RS): a Escola Felipe Marx. Em breve, conversarei com esses jovens leitores para falar sobre o livro, os personagens e o que aconteceu com eles. Cartas para minha mãe também foi adotado por escola municipal do Rio de Janeiro, pelo qual sou profundamente grata. Sempre disse que tenho muita sorte como autora: meus leitores não apenas acompanham minhas histórias, mas as amam e as abraçam, mesmo quando os temas são difíceis. Meus livros encontraram um lugar muito especial no coração dos jovens e sou grata por isso todos os dias. Além disso, este período — que abrange todo o ano de 2024 e o início de 2025 — foi repleto de eventos, feiras literárias, apresentações… Até mesmo algumas experiências completamente novas para mim. Fui convidada, por exemplo, para participar de atividades promovidas pelas escolas de samba Império Serrano e Unidos de Tuiuti, que apresentaram suas obras dedicadas a autoras negras, como Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. Estar presente nessas homenagens foi profundamente comovente e revelador. Também continuei apresentando livros fora do Brasil. Na Argentina, por exemplo, Cartas a mi mamá e Awon Baba acabaram de ser publicados, graças a uma colaboração entre a editora Pallas e a editora Factotum, de Buenos Aires. Essas edições em espanhol são muito especiais para mim, especialmente Awon Baba, que nunca havia sido publicado em Cuba e está sendo lançado pela primeira vez na minha língua materna. Por outro lado, apresentei As trapalhadas de Mulo, meu novo livro dedicado ao público infantojuvenil, na Bienal do Livro do Rio. Foi um momento muito especial, de muito carinho e troca. E, além de tudo isso, estou trabalhando intensamente com a Perabooks na publicação de Os velhos, uma história que me toca profundamente e acredito que pode tocar tanto jovens quanto adultos. É um livro poético, simbólico, com muitas camadas, e estamos fazendo tudo o que podemos para garantir que seja publicado em breve.
- Como a senhora tem acompanhado Cuba, seu país natal, e como vê o cenário político, social, econômico por lá? É uma questão que me preocupa profundamente. Acompanho as notícias do meu país todos os dias por meio de vários sites e plataformas online, e o que vejo é muito duro. Aliás, a razão pela qual estou no Brasil agora — há cerca de um ano e meio — tem a ver com o agravamento da crise econômica em Cuba, aliado à severa repressão contra os cidadãos, ao êxodo constante, à tristeza generalizada e à precariedade que permeia todos os aspectos da vida. É uma situação profundamente dolorosa. Acredito que o país vem arrastando uma corrente muito pesada há quase 67 anos. O povo cubano não conseguiu se libertar dessa realidade. Estamos em má situação econômica, mas também social. Muitas rachaduras se abriram e espaços que pensávamos ter conquistado agora se revelam uma ilusão. Há um sentimento de profundo desencanto. A sociedade viu seus valores ruírem. Suicídios, feminicídios e violência doméstica aumentaram. O vício em drogas é um flagelo entre os jovens cubanos hoje. A doutrinação nas escolas sempre foi muito forte, mas agora se tornou ainda mais feroz. E isso teve consequências devastadoras: muitos jovens não têm mais a capacidade espiritual ou mental de construir suas próprias ideias, de refletir, de sonhar com algo diferente. É muito difícil pensar no futuro de uma nação onde uma geração inteira só pensa em como escapar. Soma-se a isso a situação dos idosos, das pessoas abandonadas pela sociedade, daqueles que buscam comida em lixões. São cenas extremamente difíceis que nos tocam profundamente. Pessoas estão passando fome. Há crianças que não têm como brincar, que não encontram motivo para rir. Não há alegria no meu país. E isso me dói profundamente. Acabamos de completar quatro anos das manifestações de 11 de julho de 2021. Ainda há mais de mil presos políticos nas prisões cubanas. Pessoas que saíram para expressar pacificamente suas opiniões sobre o governo foram presas e condenadas injustamente por exercerem um direito básico. Liberdade de expressão não existe em Cuba. Protestar contra o governo é ilegal. Não há espaço real para dissidência. E o povo simplesmente sofre. A única saída que muitas famílias encontraram foi o exílio, a fuga por qualquer meio, por qualquer caminho. E, no entanto, não perdemos a esperança. Mantemos a esperança de que um dia Cuba mude de rumo, de que possamos viver com dignidade, com liberdade, com um futuro pelo qual valha a pena lutar. Mas, neste momento, essa realidade ainda não chegou.
- E o grande mundo, como a senhora vê o contexto atual? Como chegamos a esse momento de tamanha discórdia e ameaças? Às vezes, sinto que o mundo, as nações, avançam rapidamente numa corrida feroz e vertiginosa rumo à sua própria destruição. É um sentimento triste, mas real. E embora me considere uma pessoa esperançosa, que acredita em pequenos gestos, na alegria, na amizade, na generosidade… às vezes, o mal me atinge com tanta força que me deixa sem palavras. Não entendo. O que está acontecendo em tantas partes do mundo é devastador: tanta morte, tanta injustiça, tantas pessoas perdendo tudo. A situação mundial está se tornando mais preocupante a cada dia. Tenho filhos, tenho uma neta… e é extremamente desafiador para mim imaginar como será o mundo daqui a 20 anos. Não tenho ideia de em que condições estaremos, ou mesmo se ainda estaremos vivos. Confio que a humanidade poderá, em algum momento, corrigir tantos erros, tantas agressões, tantos danos causados à natureza e a si mesma. Mas, honestamente, às vezes duvido que consigamos isso a curto prazo. Espero profundamente que possamos encontrar o caminho para a paz, para a harmonia de que tanto precisamos. É difícil. Mas espero que consigamos.
- A senhora confia que a literatura e a arte possam seguir, de alguma forma, sendo caminhos para “desarmar” a humanidade e para dias com mais paz, harmonia e justiça social? Acredito que a literatura e a arte são expressões tão antigas quanto a própria humanidade. Desde que a humanidade surgiu, sentiu o impulso de desenhar o que via nas paredes de uma caverna, de contar histórias ao redor da fogueira. Sempre houve essa necessidade de narrar, de criar, compartilhar com os outros não apenas o que vivenciaram, mas também o que imaginaram, o que temeram, o que desejaram. Tanto a arte quanto a literatura acompanharam a humanidade em sua jornada. Sustentaram sua essência, ofereceram conforto, esperança e memória. Nos momentos mais difíceis, proporcionaram abrigo e resistência. E o espírito primordial da literatura e da arte não mudou. Acredito que — não sei se foi Nelson Mandela quem disse — a literatura pode ser uma arma, uma ferramenta de liberdade, mesmo para aqueles que estão presos, como foi o caso dele. Esse é o poder das palavras. Escrevo desse lugar. Desse desejo de acompanhar, de dizer a quem me lê: aqui estou. Por meio das minhas histórias, tento estar próximo, oferecer alguma forma de companheirismo, fornecer conhecimento, dar uma mão, abrir uma porta. Elas continuam sendo ferramentas que podem ajudar os seres humanos a desarmar a violência, desfazer agressões, transformar guerras em questionamentos e oferecer outras formas possíveis de existência. Elas podem ser transformadoras. Podem oferecer novos caminhos para os povos.
- A senhora está lançando novo livro, As trapalhadas de Mulo, pela Pallas. É um projeto desenvolvido já no Brasil? O foco é especialmente o público infantojuvenil, isso? As trapalhadas de Mulo é um projeto que me acompanha há mais de 20 anos. É um livro cujo manuscrito encontrei e redescobri inúmeras vezes nas minhas gavetas, perdido entre outros textos, como aqueles papéis que sempre deixamos em nossas mesas e um dia nos chamam de volta. É uma história que antecede em muito outros livros meus, como Awon Baba e Madre Sirena, e eu diria que nasceu mais ou menos na mesma época que Cuentos de Macucupé, um livro ainda desconhecido aqui no Brasil. O engraçado é que começou como uma história oral. Uma noite, enquanto eu tentava fazer meus filhos dormirem, comecei a inventar uma história para eles sobre um personagem travesso chamado Mulo. Contei sem a intenção de que durasse, mas então pensei: “Ei, isso não é nada ruim”, e escrevi, rápida e espontaneamente… e então a história ficou adormecida por muitos anos, como um conto de fadas esperando seu momento. Já no Brasil, depois de ter publicado livros com temas muito intensos, profundos e às vezes dolorosos, senti que precisava abrir espaço para algo mais leve. Então, lembrei-me de Mulo e decidi dar uma chance. As trapalhadas de Mulo é uma história divertida, inspirada na estrutura das pataquíes africanas. É profundamente cubana e afro-cubana, mas também afro-latino-americana: esta história poderia ter sido contada na Colômbia, no México ou em qualquer um dos nossos países. Ofereci o manuscrito à Pallas, que o recebeu calorosamente, e finalmente tornamos esse sonho realidade. Estou muito feliz com a edição: foi um trabalho cuidadoso, elegante e bonito. Além disso, estou emocionada por poder apresentar esse livro em Santa Cruz, compartilhá-lo com novos leitores, rir juntos e retornar ao lúdico e ancestral. Será uma experiência extraordinária.
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