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RICARDO DÜREN

Átila, o Cão

E u e minha esposa, Patrícia, acalentamos o sonho de, um dia, quem sabe, transferirmo-nos para o Litoral, para alguma vilinha praiana com cheiro de maresia, de gente simples e com ruas de areia ladeadas por figueiras e palmeiras. Eventualmente, conversamos sobre isso entre um mate e outro, sondamos lugares e planejamos como será a casinha, guarnecida por uma longa varanda na qual dispor as cadeiras de balanço. É um daqueles planos cultivados para depois da aposentadoria ou, quem sabe, para quando tirarmos a sorte grande na loteria – o que se torna ainda mais improvável para quem, como nós, raramente joga.

Contudo, para um casal com quatro filhos, planos como esse não ficam por muito tempo em segredo. As paredes lá de casa têm muitos ouvidos. Dias atrás, a caçula, Ágatha, surpreendeu-nos confabulando sobre o assunto. E alertou-nos a tirar o cavalinho da chuva:
– Daqui, não podemos nos mudar nunca mais. Temos que ficar nessa casa para sempre.
– Ora, Ágatha, e por quê?
– Por causa do Átila.
– Mas filha… ele está morto.
– Por isso mesmo… não há como levá-lo junto.

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Átila foi um poodle que nos acompanhou por 15 anos, até falecer por conta da idade – pois, sabe-se, 15 anos humanos, para cães pequenos, é muito tempo. Nesse período, viu o crescimento de todas as crianças, inclusive do Ricardo Jr., apenas um ano mais velho.

Sim, foi minha a ideia de batizá-lo de Átila. Achei que seria um toque espirituoso dar a um filhotinho de poodle o nome do sanguinário rei e guerreiro huno, conhecido entre os romanos como Flagelo de Deus e famoso também pela célebre frase “a grama onde pisa meu cavalo jamais volta a crescer”. Imaginava o susto imposto às visitas quando, ao chegar lá em casa, fossem alertadas sobre a presença de Átila, o Cão – até constatarem que tratava-se, na verdade, não de um pitbull, mas de uma simpática bolinha de pelo.

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Impossível saber se Átila, o supremo rei dos hunos, veria graça na brincadeira se ainda estivéssemos em seus tempos de glória.
– Então foi você quem deu meu nome a um cão? – perguntaria-me, enquanto afiava o gume da longa espada.
– Si, si, sim… majestade. Uma singela homenagem por vossos feitos em batalha, pela devastação que deixais pelo caminho, pela pilhagem na Macedônia, Grécia e Gália.

Então, Átila, o Huno, deixaria transparecer um brilho nos olhinhos puxados e, pondo a espada de lado, afagaria os longos e finos bigodes, cuidadosamente cultivados ao estilo oriental fu manchu. E exigiria saber:
– Mas e o cão? É tão bravo quanto eu? É forte, terrível e assustador?
– Ah, sem dúvida, ô rei dos bárbaros. Nem parece um poodle…

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De fato, Átila, o Cão, apesar da aparência inofensiva, tinha também espírito guerreiro e desbravador. Eventualmente, quando o instinto ou os hormônios de alguma fêmea o chamavam, colocava em prática elaborados planos de fuga, escavava túneis, forçava buracos na cerca e, contra nossos esforços, ganhava as ruas, para só voltar à hora das refeições. Uma dessas aventuras, contudo, custou-lhe caro. Atropelado por um automóvel, perdeu a visão em um dos olhos. Fui encontrá-lo em frangalhos e foi a muito custo que conseguimos fazer com que se recuperasse.

Muitos anos depois, a catarata tomou-lhe o outro olho e, completamente cego, passou a se guiar tão somente pelo olfato e audição apurados. A velhice também cobrou-lhe os dentes e transformou-o em um tipo bastante ranzinza, que rosnava para os outros cachorros da casa quando ousavam cruzar as fronteiras de seu espaço. Tolerava apenas as crianças por perto.

Quando morreu, ano passado, ganhou sepultura no quintal, com direito a lágrimas e a uma pedra cumprindo a função de lápide. Às vezes, as gurias colhem flores e as depositam no pequeno túmulo, para aplacar as saudades do fiel cãozinho. E, por isso, a caçula defende que não podemos ir embora:
– Como ter certeza de que os novos moradores vão colocar flores para ele?

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E, com isso, demo-nos conta de que a sonhada mudança para a praia terá de ser precedida por uma exumação. Paciência, até lá teremos tempo de planejar tudo. Se bem que… hoje corre a Mega-Sena…

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