Assim que o pai faleceu, a pequena Maria Regina Hermes Eichenberg, então com 9 anos, acompanhava a mãe nas visitas ao túmulo do patriarca. Datas como Dia dos Pais, Natal, aniversário de falecimento e, claro, Finados vinham acompanhadas de idas ao cemitério como um ritual para preservar viva a memória daquele que lhe dera a vida e só deixara boas lembranças. O passar dos anos, porém, permitiu que a agora acadêmica de Jornalismo, aos 23 anos, tenha autonomia para decidir os dias em que levará flores ao local.
“Quando era criança, lembro que ‘conversava’ em voz alta com o meu pai como se ele realmente estivesse ali. Gostava de contar sobre os gatos e os cachorros que tínhamos em casa e que ele tanto apreciava”, lembra ela, que ressalta ter sido orientada pela família sobre o que era a morte. Hoje, esse ritual se reduziu a aproximadamente duas visitas por ano e Maria acredita que não tanto o local, mas sim a maneira como lembra e a oração que realiza é que concedem homenagem ao pai.
De fato, muitas pessoas já não mantêm o hábito de visitar o cemitério como os antepassados. E os motivos para essa mudança estão ligados a duas questões centrais. Conforme o sociólogo Cesar Goes, a primeira vincula-se diretamente à proporção que a ideia de cidade tem hoje. “Hoje nós temos uma vida urbana mais difícil em termos de mobilidade. O hábito de se deslocar à necrópole era, de fato, para ambientes mais próximos.” Já a segunda diz respeito à mudança no destino dos que já se foram e ao crescimento da possibilidade de cremação. “À medida que as cidades vão se modernizando e as tecnologias permitindo, o rito da cremação se torna mais acessível e até mesmo normalizado. Antigamente cremar era uma grande polêmica”, observa.
A opção por essa técnica fúnebre, inclusive, tende a crescer especialmente entre os jovens, visto que, em sua maioria, eles não cultivam o hábito de ir ao cemitério. “Isso ocorre pois, quanto mais ‘velho’ o indivíduo for, com mais naturalidade ele vai incorporar a ideia da morte e o ambiente dela se torna mais próximo. Já os jovens não se sentem tão à vontade.”
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O sociólogo também acrescenta que não se pode deixar de refletir, igualmente, sobre o sentido de lembrança que o cemitério configura. “Esses locais representam um ambiente para a memória, que tem a função de trazer junto os vínculos afetivos e emocionais da sociedade.” Exatamente como Maria relaciona hoje os deslocamentos ao túmulo do pai.
“Acho que esse é um momento em que me sinto um pouco mais ‘perto’ dele. Ainda me sinto à vontade para conversar com ele em voz alta e sem ter vergonha”, afirma em tom de saudade. Do ponto de vista da relação social, o cemitério também adota um conceito de higiene, afinal é um local regido por regras sanitárias estabelecidas para conservar o ambiente.
Miscelânea de rituais religiosos
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Em decorrência da sua condição sobrenatural, o cemitério também se torna um ambiente propício para a reprodução de narrativas religiosas. Na opinião do sociólogo Cesar Goes, à medida que a sociedade cresce, os ritos para esse momento também ficam diversos. “A morte é tão densa, inclusive, que mesmo o sujeito que manifestou em vida não querer nada religioso vai ganhar uma cerimônia.” Na esteira desse processo, o estudioso afirma que, por tratar-se de um hábito cultivado há muitos anos, a própria ida ao campo santo pode se tornar um ritual mecânico e mesmo com atribuições de peso moral.