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Cíntia Luz: uma mulher em movimento

Foto: Bruno Pedry

“A questão racial não é uma luta só do povo negro, mas de toda a sociedade brasileira”, disse Cíntia

Cíntia Luz ainda era uma criança que cursava o quinto ano do Ensino Fundamental quando começou a perceber que precisava usar a própria voz e todas as coisas que já tinha escutado o pai falar. Filha de Maria Barreto e João Arlindo da Luz, Cíntia se considera a combinação ideal da união de duas pessoas que tinham muito a ensinar. O pai, um jogador de futebol que vivenciou o racismo, e a mãe, uma mulher empoderada e muito à frente do seu tempo. 

Hoje com 43 anos e mãe de um casal de irmãos que chegou há três anos por meio da adoção tardia, Cíntia, nascida e criada no Centro de Santa Cruz, acredita que ainda tem muito mais a fazer, principalmente por meio da profissão que exerce: a publicidade. 

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Além disso, participa ativamente da Sociedade Cultural e Beneficente (SCB) União, com foco nos projetos culturais e no movimento negro. A entidade, como ela define, faz parte da sua trajetória de forma intensa e constante. Ela nota que, em todas as fases de sua vida – e nas mais especiais –, o União sempre esteve presente.

Consciência que veio desde cedo

Se antes eu não estava no movimento negro, eu era uma mulher negra em movimento.” A reflexão de Cíntia é sobre o próprio passado. No espaço onde nasceu e cresceu, em uma casa na Avenida Paul Harris, região central de Santa Cruz do Sul, a sua família era a única negra em toda a extensão. Na escola onde estudou, mesmo sendo uma instituição pública, por estar situada em uma área mais privilegiada da cidade, a maioria dos alunos era branca. 

A questão racial sempre esteve com ela, mesmo que às vezes Cíntia não entendesse algumas atitudes que as pessoas tinham. “Eram sempre coisas que me deixavam muito constrangida ou com um sentimento ruim. Comentários sobre o cabelo. Nos concursos do colégio, escolhiam as meninas loiras pra concorrer como representante da turma ou para fazer alguma leitura em público, cantar o hino. Eu nunca conseguia ocupar esses lugares, mesmo me candidatando”, relembra.

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Foi no quinto ano, ao escutar o hino de Santa Cruz, que veio a percepção de que aquela letra não representava nem ela, nem seus familiares, e menos ainda seus antepassados. “O hino não conta a história do meu povo, que também ajudou a construir a cidade, a cultura. Desde lá, eu não canto o hino de Santa Cruz porque não me representa, não inclui meu povo.”

Muito dessa consciência, conforme Cíntia, veio por causa do pai, João Arlindo da Luz. “Ele era um homem negro de pele retinta, foi jogador de futebol de Santa Cruz na década de 1960 e vivia na elite da cidade. Por andar nesse meio, ele sentiu muito isso de não poder entrar em alguns lugares; de o colocarem no final da mesa, o garçom começar em um canto e, quando chegava ao final, não repor a carne. Ele contava essas histórias e eu ficava imaginando coisas parecidas que eu estava vivenciando.”

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Se estivesse vivo, João Arlindo teria 83 anos. Contudo, Cíntia manteve vivos todos os seus ensinamentos para passar a mais pessoas. Uma das coisas que o pai dizia e que a marcou muito tem a ver com reconhecimento, que é diferente para o povo negro. “Imagina tu ser uma criança com 10, 11 anos e teu pai dizer que, por mais que tu faça, para ter reconhecimento, tu nunca pode errar. E essa é a verdade, temos sempre que fazer além, carregamos esse fardo. Se uma pessoa negra errou, toda uma comunidade negra entra no mesmo pacote, ao contrário do que ocorre com brancos.”

Mas não foi só o pai que formou quem Cíntia é e como pensa. A mãe, mesmo vivenciando menos o racismo por ter a pele mais clara, tinha pensamentos sobre a força da mulher que ela passou para a filha. “Por a família ter uma maioria feminina, ela sempre falava que era importante trabalhar para não depender de homem, para ter nossas coisas, estudar, trabalhar”, conta.

Vida que começou no União

“O União atravessa minha vida todo o tempo, a mãe até brinca que eu fui concebida num bailinho de Carnaval, porque eu sou de dezembro, e o Carnaval caiu em março daquele ano”, relata Cíntia. Aniversários, casamentos, batizados. Foram vários os eventos vividos dentro do clube que em 2023 completa 100 anos.

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“Meu pai, por vários anos, fez parte da diretoria. É uma entidade em que eu entrei e percebi como a comunidade negra se organizava. Eu via presidentes negros, secretários, toda uma organização de pessoas negras fazendo seus eventos, participando de futebol, de escolha da mais bela negra, do Carnaval, que mais tarde acabou se tornando o carro-chefe. Essa convivência da família e do União não se separa, eu me criei lá”, comenta Cintia.

Dentro da SCB, existe o movimento negro que se organiza desde a década de 1970, e do qual Cíntia faz parte atualmente. “No final da década de 1990 e no início dos anos 2000, começamos a organizar de maneira estratégica os projetos. Temos projetos culturais voltados para as crianças da periferia, nos quais trabalhamos a questão da autoestima, o Carnaval, cultura afro, também a questão de prevenção às drogas, mas o principal é o de percussão, no qual formamos percussionistas para participar da escola de samba. Esse projeto parou na pandemia, mas temos o objetivo de retomar.”

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Cíntia faz parte do movimento negro do União | Foto: Bruno Pedry

A publicidade

Depois de sair do Ensino Médio, Cíntia optou por cursar Publicidade e Propaganda. “Como não enxergava pessoas como eu na publicidade, queria levar isso para dentro da comunicação. Em uma propaganda simples de água, de margarina, não havia pessoas negras. Esse era o meu foco e minha monografia foi sobre a invisibilidade do negro na publicidade de Santa Cruz.”

Para concluir a graduação, trabalhou como empregada em casas de família e safrista. Além disso, tentou por seis vezes uma vaga como funcionária da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), para ter desconto nas mensalidades – na sexta vez, conseguiu. Na salas de aula do Ensino Superior, também sentiu a ausência de colegas negros. “No curso de Comunicação em geral, tinha outros alunos, mas na Publicidade eu era a única. Foi bem desafiador levar esses questionamentos para dentro da universidade.”

Cíntia chegou a começar o mestrado em Desenvolvimento Regional, mas ainda não o concluiu. Na especialização, ela segue na linha de pesquisa da Publicidade Governamental. “Entrei a fundo nos estudos culturais para pensar a publicidade regional das prefeituras.”

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E chegam as crianças

A pesquisadora precisou trancar o mestrado porque, em 2019, chegaram os dois filhos. Diferente de uma gestação, Cíntia conheceu a filha com 8 anos e o filho com 7. “Precisavam da minha atenção, do meu tempo.” A adoção sempre foi algo que esteve na sua mente, mas ainda pensava em ter filhos biológicos.

Quando ela e o marido, Júlio César Felício, de 43 anos, decidiram tentar, descobriram que só seria possível pelo método in vitro.  No início, fizeram o cadastro que dava preferência para a adoção de crianças de 0 a 5 anos. Mais tarde, após verem uma propaganda sobre a importância da adoção tardia, ampliaram a faixa etária até 10 anos de idade.

“Para ver como a história do União se atravessa: no dia 1º de julho de 2019, eu e a mãe estávamos fazendo a lista das pessoas que seriam homenageadas no baile de aniversário do União, e eu recebo uma ligação da assistente social perguntando se eu ainda estava interessada, porque tinham achado duas crianças irmãs no perfil. Quando eu lembro, até me arrepio.” No fim de semana seguinte, o casal já foi visitar os dois irmãos que viriam a ser os seus futuros filhos. “Desde o dia em que aceitaram ser da nossa família, eles nos chamam de pai e mãe.” Assim como o pai lhe ensinou, Cíntia repassa o aprendizado aos filhos. “Na casa onde eles estavam, já era feito um trabalho muito legal e a gente só deu continuidade. Trabalhamos muito a leitura com eles, com personagens da cultura afro, para terem esse conhecimento”, completa.

Antirracismo

Para Cíntia, o antirracismo passa por diversas camadas da sociedade e é, sim, possível fazer mais para que as desigualdades sejam superadas. “Na mão de quem está o poder do sim ou do não? Está na mão das pessoas brancas. Várias pessoas brancas tiveram oportunidade de dizer sim para mim e não quiseram. É preciso se questionar por que no teu ambiente de trabalho a maioria das pessoas é branca. Observa o teu itinerário e começa a ver onde as pessoas negras estão.”

Ela destaca que, na maioria das vezes, as pessoas pensam no racismo violento, mas há aquele que cala, de quem vê e não age. “É dizer para o colega branco que ele está sendo racista, assim como eu digo para os homens quando estão sendo machistas. É hora de mudar.” Cíntia também diz acreditar que a ideia de “lugar de fala” foi distorcida e que é preciso que pessoas brancas falem sobre questões raciais. “Quem comete o racismo são os brancos, foram os antepassados brancos que levantaram a mão que carregava o chicote. A questão racial não é uma luta só do povo negro, mas de toda a sociedade brasileira”, conclui.

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